quarta-feira, 6 de maio de 2009

(Arquivo 2007) entrevista de Ailton ao Site do Museu da Pessoa

Equipe:
DIRETORIA
Ely Harasawa
José Santos Matos
Karen Worcman
Márcia Ruiz

SUSTENTABILIDADE
Pedro Corradino, coordenador
Ana Paula Bastos, captação de recursos (Rio de Janeiro)
Janaína Rossi, assistente

PORTAL
Heci Regina Candiani, editora de conteúdo

ACERVO
Rosali Henriques, coordenadora de área
Gustavo Ribeiro Sanchez, estagiário


RELAÇÕES INTERNACIONAIS E REDES SOCIAIS
Joana Zatz Mussi, coordenadora da área
Mariana Casellato, mobilizadora de redes
Sarah Faleiros, mobilizadora de redes

PROGRAMA CONTE SUA HISTÓRIA
Eduardo Barros, coordenador de estúdio
Adilson Moreira de Lima, técnico de vídeo
Cláudia Leonor, coordenadora de projetos
Gabriel Costa Monteiro, assistente de estúdio
Thiago Belotto, estagiário
Thiago Pereira Majolo, pesquisador
Winny Choe, pesquisadora
Julia Relva Basso, pesquisadora

PROGRAMA DE FORMAÇÃO
Sônia London, coordenadora de área
Simone Alcântara, coordenadora de projetos
Ana Carolina Carvalho, formadora
Ana Paula Severiano, formadora
Danilo Eiji Lopes, formador
Fernanda Gomez Peregrina, formadora
Giselle Vitor da Rocha, formadora
Márcia Trezza, formadora

PROGRAMA MEMÓRIA INSTITUCIONAL
• Responsável
Cláudia Fonseca

• Assistente
Isaac Deluca Patreze, assistente de área

• Coordenadoras
Denyse Emerich
Márcia de Paiva (Rio de Janeiro)
Maria Raccioppi

• Pesquisadores/São Paulo
Maurício F. Rivero
Nádia Lopes

• Pesquisadores/Rio de Janeiro
Douglas Thomaz de Oliveira
Inês Cordeiro Gouveia
Morgana Mara Vaz da Silva Maselli
Sergio Ricardo Retroz

• Estagiário
Ricardo Pedroni

APOIO ADMINISTRATIVO
Maria da Conceição Franco Pereira, recepcionista
Keli Cristina Garrafa dos Santos, assistente administrativo



VOLUNTÁRIOS
Amber Filgueiras, transcrição
Andreza Tonasso Galli, eventos
Anna Paula Cajeron Medrano, versão em inglês
Carolina Viveiros de Souza, versão em inglês
Caroline Alide Moschella Glöe, versão em inglês
Daniela Moreno Zanon, versão em inglês
Débora de Cássia Pinto, edição de textos
Emanuele Nunes dos Santos, versão em inglês
Florindo Katsushisa Enoki, versão em inglês
Graciela Paparazo N. Felix, tradução de inglês
Lívia Mara Ganzella, versão em inglês
Maria Christina de O. Macedo, transcrição
Marina Puoli Alves Bastos, revisão de inglês
Nathália Pires Souto, versão em inglês
Renata Barbosa Corrêa, versão em inglês
Renato Ramalho Geraldes, versão em inglês
Ricardo Soncini Cazarino, transcrição
Samantha da Aparecida Pasoti, versão em inglês
Sonia Ponzio de Rezende, versão em inglês
Waléria de Almeida Coicev, versão em inglês



P/1 – Então Ailton, boa tarde, Queria começar a entrevista pedindo pra você falar seu nome completo, data e local de nascimento?

R – Meu nome é Ailton e o meu nome completo é Ailton Alves Lacerda Krenak, esse Krenak é o nome da minha é família indígena, do povo Krenak, que vive numa região do Brasil, que é o Vale do Rio Doce divisa de Espírito Santo com Minas Gerais.

P/1 – E e quando que você nasceu?

R – Eu nasci em 1953, eu nasci no século passado, e nasci nessa região que é um córrego. Que o pessoal da minha região se atribuía era falar o nome do córrego, do rio. Ah se você tava na margem do rio você falava no rio tal, se você tava na cabeceira do rio você dava o nome do córrego, que vinha da cabeceira do rio. Eu nasci num córrego que chama Córrego do Itabirinha. Esse Córrego do Itabirinha ele é da bacia do Rio Doce, ele vai jogar a água dele lá no Rio Doce e o Rio Doce depois leva todas as nossas idéias, nossos pedidos, lembranças, lamentações e despeja lá no mar.

P/1 – E Ailton qual é o nome dos seus pais? Você podia falar um pouco dos seus pais?

R – Eu posso. E meu pai e a minha mãe, desde pequeno, eu sempre achava que eles eram irmãos, porque o meu pai se chama Neném e a minha mãe Nesita. Aí eu ficava sacando eles, assim, quando eu era pequeno, eu falava assim: Pô, eles são os dois irmãos muito legal. A história deles dois é muito bacana mesmo, porque o meu vovô, pai da minha mãe, ele achou o meu pai numa num roteiro de viagem que ele tava fazendo, porque esse meu vovô Pedro, ele foi o guia da entrada dos colonos pra região de selva, aonde a gente vivia pra derrubar a mata. E tinha uma família de alemães, que migraram pro Brasil, é eles eram mais abilidosos com essa coisa das tecnologias e eles introduziram as serrarias. Não era só derrubar de machado era derrubar de serra. Tirar as toras grandes levar pra beira do rio e serrar. Eles precisavam de um camarada que conhecia aquelas montanhas e aqueles vales, que sabiam entrar onde tinha floresta pra dirigir eles. E o meu vovô Pedro pegou as a mulher dele e os as filhas, principalmente filhas, muitas filhas. A minha mãe ela tem as uma turma de “irmã”, tem a tia Leonisa, tem a tia Fifina, tem a tia Lurde, tem a tia Lidinha. E a minha mãe era uma menininha, quando o meu avô seguia com essa família levando uma grande tropa. Tropa de cavalos e de burros carregando aquelas aqueles aquelas coisas, que eles precisavam levar pro sertão pra implantar lá os os sistemas de serraria deles. Aí, meu avô passou num num vale aonde meu pai estava com alguns dos parentes dele ainda vivendo perto de um rio que chama Pancas, é a região do Pancas, é uma região que é mais Espírito Santo do que Minas. Mas essa zona toda era um contestado, nem os mineiros, nem os “capixaba”, governava aquela área não. Aquela área ali, era uma área de conflito in intertribal ali, de confli de conflito inter entre o o a jurisdição de Minas e do Espírito Santo. Isso é uma coisa importante de entender, porque como era um lugar onde o estado não tinha presença, as pessoas tinham muito mais autonomia, eram muito mais inventivos, aprontavam pra caramba. Então, tinham os comandantes, tinham os guerreiros, era um negócio meio Guimarães Rosa, assim, parecia aquele Sertão Veredas. Quem era mais quem era mais é criativo, quem era mais brabo, quem impressionava mais por alguma razão, tinha um governo, uma governança no meio daquela gente é complexa. Porque ali tinha os índios, os Botocudos, que são meus antepassados. Do lado do meu pai, veio do lado da minha mãe, só que tanto do lado do meu pai, quanto do lado da minha mãe, ocorreu uma coisa muito chocante, as aldeias deles foram dizimadas, quando eles ainda eram jovens e esses camaradas voltaram a se encontrar muito mais tarde, constituir família de novo. Entrar em todas as as as as contendas da daquela região do contestado da dis disputa de terra, as guerras que foram feitas, aquelas pequenas guerras regionais por terras. Eles participaram de tudo isso é acompanhando. O essa segunda descoberta do Brasil. O Brasil sempre tá se descobrindo. Descobre, descobre, descobre, segunda, terceira, quinta. E o meu pai acompanhou o meu avô, ele largou o grupo dele lá no Pancas e acompanhou o meu avô, o pai da minha mãe. E aí, como ele acompanhou o vovô ele ficou vendo a mãe e os dois já se entenderam, gostaram logo um do outro e virou casamento. O o o meu pai acompanhando o meu vovô materno. Casou com minha mãe e ficou ajudando o meu vovô, ajudando ele, aprendendo coisas, fazendo roça e aprendendo coisas. E uma das coisas que meu pai aprendeu, que eu acho que ficou muito influenciou muito minha meu relacionamento, minha relação com ele, com meus outros com o mundo também. O meu pai aprendeu a ser ferreiro.

P/1 – Ferreiro?

R – Então, todo mundo que precisava, por exemplo, botar um aro de ferro numa roda dum carro de boi, era o meu pai que sabia botar o ferro lá no fogo, derreter ele assim, e fazer o aro da roda de carro de boi. Então, naquela região, naquele sertão, os cavalos que precisavam de ferradura, quem precisava consertar uma arma de fogo, fazer uma foice, fazer um facão, fazer um machado. Então, quando eu tinha, assim, uns 6 anos, 8 anos, por aí, tinha um um lugar assim, onde o meu pai tinha a forja dele, tinha o fogo e meus irmãos, mais velhos do que eu, Benjamim o Assir eles escapavam, porque meu pai botava eles pra tocar o pra puxar uma cordinha de couro, aquela cordinha de couro que ele ficava puxando assim, era um uma um fole, um instrumento assim, que fazia vento e acendia o fogo no carvão, uma forja, bem assim antiga, não sei se vocês já viram? É um objeto parecendo uma sanfona, um trem grandão.

P/1 – Já, eu já vi, um fole claro.

R – Um fole, assim, aí num será que ainda tem um fole, por aí a fora funcionando?

P/1 – Interior aí tem.

R – Aí ficava tocando o fole assim, aonde tinha o fogo, o carvão ficava acendendo. Eu quando tinha, tipo, 6 pra 8 anos de idade, eu não alcançava a cordinha, porque ela era posta pros meus irmãos mais grandes puxar. Aí meu pai botou uma pedra, uma pedra de moinho, aquelas pedras de mó. Ele botou uma pedra de moinho aqui pra eu subir em cima da pedra de moinho e puxa o fole pra ele, pra ficar acendendo o fogo lá na na oficina. Aí o ele chamava de tenda. Tinha que puxar o fole pra acender o fogo pra ele ficar mexendo na tenda. Aí ele fazia aquelas coisas com ferro e carro de boi, os aros das carroças, as ferraduras dos cavalos. Eu ficava vendo o meu pai, eu eu ajudava o meu pai naquelas coisas, eu imendar correntes de aço, aquelas correntes grandonas, que eles usavam pra arrastar as toras que vinham da da da mata pra passar pra serraria. Então, na minha infância foi vendo o meu pai é moldando coisas, fazendo ferramentas, fazendo ferros virar é faca, facão, machado. E minha mãe e minhas ir minhas primas, minhas tias, esse povo meus tios, meus parentes que conviveram, que compartilharam esse tempo da gente, do meu pai junto com meus irmãos, com minha mãe, comigo é lá no Itaberinha. Eles acompanharam essa história nossa até lá pelos 11 até quando eles “tava” com 11 anos de idade, por aí, 11, 12 anos.

P/1 – Deixa eu te fazer uma pergunta difícil. Qual é a sua primeira lembrança, assim, que você tem?

R – A minha primeira lembrança? Minha primeira lembrança é da gente é eu percebendo, assim, o lugar onde eu tava vivendo com meus parentes na beira de um um rio com barranco alto, o rio passando lá embaixo. E o lugar aonde a gente morava era o rio passava lá nos fundos do lugar aonde a gente morava, contornava aqui, assim, fazendo barrancos altos. Eu me lembro quando tinha enchente e vinha trazendo árvores. Lá em cima, aonde tinha floresta os o rio derrubava as árvores e vinha trazendo as árvores, derrubando barranco. Eu achava que aquilo era uma coisa fantástica, assim, que uma hora podia derrubar a nossa casa, levar todo mundo. Eu lembro disso é do gado passando, porque era uma rota de tropeiros e de gado. Eu lembro do gado, do assustando é o gado se assustava e os vaqueiros não conseguiam controlar o gado e aquela manada de boi saía invadindo pra todo lado, inclusive derrubavam casas, invadiam. Os bois invadiam os os lugares onde gente morava. São lembranças, que eu tenho, assim, mais antigas. E da matança dos bois.

P/1 – Ah, é?

R – Essa lembrança das matanças dos bois, assim, eu tenho ela muito forte. Ela me ela gravou muito forte na minha na minha memória, assim, é a coisa da matança dos bois. Porque nu num matava os boi os bois em lugar separado, matavam ele no meio das pessoas. Chegava numa árvore, prendia o boi e matavam o boi na árvore, assim, com um monte menino passando. Hoje eu fico imaginando, pô! Aqueles caras eram uns doidos. Matando os animais daquele jeito e as crianças ficavam totalmente Menino vendo aquela coisa toda ali, os caras matando os “boi”, matando com violência danada. Dava machadada na cabeça do boi, ou então, enfiava uma faca na cabeça do boi, depois sangrava o boi. Os meninos ali participando, alguns meninos até entravam junto pra pegar o boi ou eventualmente dando um tiro de carabina na cabeça do boi, também.

P/1 – Nossa!
R – É. Tudo quanto é tipo de crueldade. E minha infância eu convivi muito com isso que hoje eu vejo banalizado. No cotidiano, na vida das pessoas, que é isso que ganhou o título de violência. O nome. De violência. E quando eu era criança eu não ti eu não via essas coisas como violência, eu via isso como O rio trazia as árvores, derrubava tudo, saía arrebentando os barrancos, podia derrubar casa, o boi também podia derrubar casa, os homens matavam o boi, os meninos comiam o boi. Então, era tudo uma dança só, com a passagem do tempo, as pessoas começaram a me mostrar que tinha categorias de ocorrência. Que tem coisa que aquilo ali é violência, aquilo é matar o boi assim é violência é dá um tiro de carabina, essas coisas. Mas na na infância esse mundo foi muito criativo. Eu acho que ele me deu muita muito combustível pra eu ficar plantando pelo mundo.

P/1 – E você se lembra, assim, quando cê era pequenininho, você podia descrever como era o lugar que você morava? Com quem quê você morava?

R – Oh, a minha a minha vida de menino foi cheia de aventura, porque eu tava no meio dos meus é, quantos irmãos? Eu tava no meio eu tava no meio de mais 6 irmãos meus. E no meio de mais uns 50 primos, 40, 50 primos e no meio de um monte de tias e de primos. Esses camaradas todos, essa gente toda, é era como nossos “parente” mais íntimos. A gente tava tudo perto um do outro, então, a gente não tinha lugar pra dormir. Cê podia dormir em qualquer lugar, se anoitecesse cê podia dormir na casa da sua tia Preta, cê podia dormir na casa da tia Maria, você podia dormir na casa de qualquer um. Cê podia dormir na casa dos seus primos, na casa da sua mãe, na casa da sua avó, na casa dos seus tios, cê na hora de comer, se você tivesse em trânsito, no lugar que você tivesse, você podia comer ali, não era estranho comer na casa dos seus parentes, era em casa também. Os meninos de lá andava, a gente andava, nós. O dia nem bem amanhecia a gente já tava a aproveitando as primeiras luzes do dia pra gente saía plantando, pegar boi, pegar cabrito, é pegar cavalo, ir pro curral aonde pessoas estavam tirando leite das “vaca” pra beber leite na hora que tirava no cane na caneca, é imitar os adultos agarrando aqueles boizinhos pequenos, os grandes pega homens grandes pegavam bois grandes, meninos pegavam bois pequenos. Então, juntava um monte de menino, um puxava o rabo do boi o outro puxava a perna do boi e outro montava no no pequeno, no bezerro e quebrava o braço, quebrava o pescoço, rachava a cabeça, quebrava a perna e toda hora tinha um moleque arrebentado. Assim, doideira mesmo e disparava montado num cavalo sem nada. O cavalo em pêlo, sem freio, sem nada. A gente tirava embira do mato, pegava a embira ia aliciando o animal, capturava ele, enfiava aquele cabresto na boca dele, amarrava na boca dele uma embira feita de fibra de de coisas do mato e um menino jogava o outro em cima do cavalo. Porque o menino não tinha altura pra montar num cavalo. Então, ele jogava o outro em cima do cavalo, o cara se agarrava lá com aquela embira e o bicho saía voando e o moleque em cima. A possibilidade desse moleque é se arrebentá num num debaixo duma árvore, passando com o cavalo, com ele em cima ou ele ficar pendurado num pau. A gente tinha que ter essas manhas. Pendurá num pau e deixar o cavalo ir embora ou meter a cara no pau e cair no chão ou esperar o cavalo passar dentro d’água pra você cair de cima dele dentro d’água. Se ele pegava um um um uma grota daquelas e subia pra uma pedreira daquela lá fugindo com você, você tinha que encarar essas aventuras. Então, assim, a coisa mais comum era os meninos tá com uma tala de bambú. É, pegava assim, bambú. Os tios já sabiam fazer isso. Os meninos quando ficavam grande, menino grande já sabia fazer aquilo. Se você tá andando com um cara e ele quebra o braço ou a perna, cê pega a tala de bambú, pega a tala de bambú, deixa o cara bem quetinho, esticadinho, põe a tala de bambú, quebra ovo, quebra o ovo, muito ovo, gema de ovo. E põe aquela coisa aqui, assim, de gema de ovo no cara, enrola ele e põe aquelas talas e deixa ele preso lá até ele tê uma salvação mais decente, mas por enquanto a salvação é aquilo ali. É tala, é botar aquelas coisas, enxofre, azeite é o que a gente desse na cabeça. Eventualmente passava algum feiticeiro por perto e mandava a gente socar uns coquinhos num aquela uma coquinho. Tô tentando lembrar o nome dele, porque usam pra tirar o óleo fazer sabão Cutieira! Cutieira! Aí pegava a cutieira, quebrava aqueles coquinhos, juntava aquele unguento lá, batia com folhas, umas ramas mágicas, enrolava tudo aquilo no camarada pra salvar ele. Geralmente o cara cresce a geralmente o cara sarava e as vezes o cara crescia e ficava, assim, com o braço meio torto Porque o médico não costurou direito Mas esses meninos, esses meninos, que creceram junto comigo é a maioria deles é viveu assim, aventuras incríveis mesmo e alguns deles ao longo do do do período assim, da adolescência, depois jovens e virar adulto; alguns deles foram morrendo. Os que foram morrendo quando era menino, antes de virar rapaz, eles morreram de doenças é tipo é extosomose ou eles morreram de doença essa doença, como é que chama? Chagas! O cara tava com 16 anos de idade e já tava com o baço, o fígado tava com a parte do organismo dele que podia ser atacado por essas doenças da água, beber água de rio, de lagoa, que a gente bebia água de tudo quanto é lugar. A gente não tava nem aí. A gente tava fugindo dos nossos pais, dos adultos que davam alguma controlada na gente. A gente bebia água de lagoa, bebia água de qualquer lugar e essas águas que a gente bebia ia dando uma envenenadinha no cara. Se ele não tinha é nenhuma medicina doméstica que cuidava dele, ele tava frito, porque a gente não conhecia medicina essa esses recursos médicos hoje, essa parafernália de SUS, de hospitais. Eu até o jovem, até quase adulto eu não sabia o quê que era uma estrutura dessas de médico, esse aparato de hospital essa coisa toda, e muitos daqueles moços nasceram e viveram sem nunca ter ficado sabendo o quê que era uma dessas medicações é de laboratório, sem tomar nenhuma vacina. Você cresce, a vida inteira sem nunca tomar uma vacina na vida. Nem vacina pra pra esse negócio de paralisia infantil, nem vacina pra pereba, nem vacina pra nada. Então, você cresce, incara totalmente bruto. E eu me lembro que da maior parte desses meninos, os que não morreram a bala, assim. Nas guerrilhas lá do sertão é os que não morreram doente, com doenças de vida é na natureza assim mesmo, no embate da natureza. Eles cresceram e estão hoje com suas alguns deles já tem neto, outros tão com seus filhos, assim, igual a eu que tem filhos tardios. Eu tenho uns meninos pequenos e já tenho neto também e é desse tempo a lembrança mais, assim, rica talvez, que eu tenha guardado da convivência com o meu pai e e da presença do meu pai e da minha mãe super, assim, mágica e maravilhosa é naquela naquela grande aldeia, assim, dos meus primos, primas, tios, daquela parentalha toda, porque a partir desse desse tempo, que deve ter sido aí por 11 anos, 12 anos de idade a região que nós que eu nasci, que nós vivemos. Que meu pai, minha mãe, essa minha parentalha pôde viver, assim, em vida selvagem mais ou menos. Ela começou a ser colonizada de uma maneira tão violenta, que as últimas matas. As últimas árvores mesmo frondosas, que tinha na nossa região, elas foram arrancadas em carretas e eu me lembro que foi a primeira vez na minha vida que eu senti cheiro de diesel, cheiro de graxa e de diesel e eu estranhava pra caramba, eu achava muito ruim o cheiro de graxa e do diesel, porque o diesel era o combustível que os caminhão, os caminhões grandão, que entravam pra tirar nossa mata, usavam e aquilo era assim, naquele calor, aquela poeira danada, aqueles caminhões passando levando a mata embora e eu não tinha uma percepção dessa coisa de meio ambiente, desses trem assim mais complexos, mas eu sabia que aqueles caras estavam roubando alguma coisa impagável. É tirando da gente alguma coisa de valor inestimável. Hoje eu sei que eles tavam acabando com o meio ambiente, eles tavam acabando com as nossas nascentes, com as nossas águas, com os pássaros, com os bichos que eu amo. Mas na minha na minha inocência o que eu sentia é que aqueles caras eram desagradáveis, que eles fediam diesel e graxa e que aqueles caminhão eram barulhento. Aí, com essa ocupação da nossa região por empreendedores. Madeireiras, serraria, colonos, criadores de gado, fazendas, nós saímos meio expulso dessa região, foi quando a gente fez a nossa primeira migração e saímos. Meu pai, meus tios, meu avô e uma renca de netos, sobrinhos e filhos, e vieram saíram com uma intenção, assim, meio difusa de ir pro Paraná. A gente saiu , assim, achando que aquele montinho de gente ia atravessar de Minas e ia até um lugar que era Paraná, porque na época, tinha gente saindo de lá da nossa região indo pro Paraná, porque o Paraná tinha floresta, o Paraná tinha bicho, tinha muita fartura, tinha rio.

P/1 – Antes da migração eu queria só te perguntar ainda duas coisas lá

R – Aí a gente foi pra lá, a gente entrou numas de ir pro Paraná.

P/1 – Que isso aí já vai ter uma ruptura grande. Que vocês mudam. Mas antes da mudança, eu queria que você recordasse um pouquinho. Quando uma adolescente, assim, ficando mais mocinhas vocês tinham essas aventuras aí? Que você vai poder contar um pouco mais. Quando você era uma criança menor, de quê que as crianças menores brincavam?

R – Ah, as crianças menores brincavam de um monte de coisa rapaz. Uma das coisas que as crianças menores “brincava” era ficava perto do lugar aonde os mais grandes ficavam debulhando milho, tirando milho do sabugo e jogando aqueles sabugos no chão. Nós pegávamos aquele sabugo e pegava um palito, a gente ia pegava graveto de lenha enfiava o graveto no sabugo, botava perninha no sabugo pra fazer boizinho. Então, a gente fazia boizinho com o sabugo, fazia bichos com o sabugo, fazia o o a cerca com o sabugo e pegava aquelas coisinhas de mamona, aquelas bolinhas de mamona enfiando um eixo na em duas bolinhas de mamona, botando rodinha nele, pegando uma uma abóbora, alguma outra coisa. Tinha umas abóboras d’água umas sabe uma coisa parecida com essas buchas de tomar banho?

P/1 – Sei

R – Essas vegetal, aquela bucha de tomar banho, quando ela tá verde, ela é um ela é um legume. Sei lá. Ela é um legume, assim, compridinho parecendo uma abobrinha. Tinha umas dessas que era pra que depois virava bucha mesmo mas tinha umas outras eram umas pareciam umas abóboras é uma abóbora d’água que chama, umas compridinhas assim, é macia. Então, a gente furava ela com o palito, enfiava as rodinhas de mamona ali assim, e aí fazia uns inventava uns veículos super bacana. Imagina, uma abóbora voadora, uma moranga, um negócio assim. E brincando os artefatos as coisas que a gente ficava brincando assim. Hã e uma idéia mais Ah, claras! A gente vivia aprontando com os pobres dos peixes, a gente pegava a peneira, pegava a peneira, pegava balaio ía pra aqueles córreginhos e vinha um bando de moleque com varas na mão dando o maior cacete, assim, na cabeceira da água, assolando os bichinhos e os outros com o balaio ia ia re ia rede não, a peneira, uma peneira, assim, enfiada dentro d’água pegando os peixinhos. Eram lambarizinhos, piabinhas os minúsculos peixinhos, que aqueles moleques é maluquinhos agarravam ali, alguns mais exibidos ainda pegava o peixinho vivo.

P/1 – Comia?

R – E comia ele, pra mostrar com quanta vontade que ele tava de pescar e essa brincadeira de pescaria ela foi muito, muito boa. Foi muito importante, porque como tinha muitos corriguinhos, tinha muitos igarapészinhos com é com a natureza ainda. Abundante, a gente tinha o a oportunidade de tá o tempo inteiro fugindo do meio do mun um pouco, assim, do mundo dos adultos e mergulhando no mundo da da das crianças. Mundo da infância. E esse mundo da da das crianças, assim, mais independente mesmo é um mundo muito bacana, porque a gente podia tudo. A gente escutava de longe, assim, o carro de boi. O carro de boi vinha rasgando e aí a gente já ficava assim, falava assim: Vamo fugir. O carro de boi começava aquela cantiga dele assim, demorava, daqui umas duas, três horas é que ele ia passar perto ali, de onde a gente tava, mas a gente já ficava arrumando um jeito de fugir. Aí, quando podia, pulava em cima dum carro de boi daquele, se escondia. É tão maravilhoso. Menino. Porque menino acha que pode se esconder em qualquer lugar. Como é que você vai se esconder em cima de um carro de boi? Sabe? O cara do carro de boi só não via a gente, porque não queria, porque o carro de boi tava lá, assim. O carro de boi com a esteira grande, assim, de taquara, cheio de milho. Com palha e tudo. O menino achava que ele podia correr, pular no carro de boi e se esconder no carro de boi. E a gente fazia isso, a gente ía, pegava ponga no carro de boi, pendurava nele. Subia pra cima da sacaria de café, de milho ou do milho em palha mesmo e ficava lá aprontando. Viajava naquele carro de boi saía até saía mais fora da vila assim, pegando caminho já pra roça. E tem a história do menino da nossa turma que era meu primo. Edil! Ele foi a turma que pegou ponga em carro de boi, eu acho que ele era muito pequeno meio bobo assim, e todo mundo deitou em cima daqueles sacos de café que o carro de boi tava carregando gostoso. Esse menino dormiu e os outros pularam e ele foi embora. O carro de boi levou ele embora dormindo no carro de boi. Esse camarada apanhou muito quando ele foi pêgo de novo, porque o pai dele, a mãe dele, meus tios acharam que ele tava muito fujão. Mas ele, largaram ele num patrimônio, lá pra cima, e foi denunciado pra família, foi um caso grave. Então, os meninos aprontam pra caramba. Uma coisa que os meninos aprontavam, que deixava todo mundo, os adultos é em povorosa, em pânico mesmo, era quando ficava seco pra caramba, que os pastos tava tudo seco, demorava pra chover, igual a esse ano assim. Aí, os meninos metiam fogo naqueles pastos. Os meus meninos mais malucos. Mais assim, bagunceiros mesmo, eles pegavam um gato ou pegavam um cachorro, amarrava uma palha com fogo no rabo do gato ou do cachorro, dava um pau nele e ele fugia o bicho fugia pro mato espalhando fogo, espalhando fogo no pasto, espalhando fogo na roça.


P/1 – Nossa!
R – Guerrilheiros. Bom, mas a gente nunca causou nenhum dano, assim, muito chocante, a não ser esses gatos e cachorros que agente botava fogo no rabo deles. Os cavalos a gente montava neles, eles davam coice na gente, essas coisas.

P/1 – Mas quais foram os primeiros animais, assim, que você conheceu?

R – Os primeiros bichos?

P/1 – É.

R – Ah, o primeiro bicho que eu conheci foi porco, pato, galinha, cabrito, marreco, galinha de angola, paturi, aqueles pato da lagoa, pato d’água, marreco. Hã tatu, paca. Sem muita intimidade a gente ficou conhecendo o porco do mato, porque nossos pais, nossos tios traziam eles, caçavam pra trazer pra nós. Onça, aqueles pequenininhos viados do campo, viadinho do campo, quando eles conseguiam caçar. Cabrito! Carneiro não muito, carneiro eu sempre achei uns caras estranhos, mas cabrito. Cabrito subindo em pedra, aprontando pra caramba, a gente tava sempre juntos. Cachorro. Quais os outros animais? Burro, mula, tatu não é isso as as tropas, os animais de tropa eu conheci desde muito cedinho. Eu me lembro de eu dentro de um balaio, porque os os os os mula e burro são bons animais pra você carregar, botar peso em cima deles. Então, a mula, por exemplo, tem um balaio de taquara grandão assim, que fica pendurado um dum lado um outro do outro equilibrado em cima dela ali carrega numa boa. Eu me lembro que eu era bem pequeno, os nossos parentes quando iam visitar uns aos outros, nas roças, eles cançavam de controlar aqueles moleques e pegava o moleque enfiava ele dentro do balaio. Eu me lembro deu pequeno dentro dum balaio tava lá a mula andando, eu lá dentro do balaio lá. Aí, quando os meninos acordavam, dentro do balaio, os pais tinham que tirar eles de dentro do balaio, porque senão o cara podia assustar o burro ou levar um um tombo. Essa de dormir no balaio é bom pra caramba, viu? E essa de o balaio também me lembrou que no na lá em casa, eu, meus primos, essa turma da minha geração, nós não tínhamos cama. Então, quando a gente era pequenininho a gente ficava dentro de balaio mesmo. Era balaio, tinha os balaio dentro de casa. Não tinha esses objetos, esses móveis, cama. Então tinha esteira e tinha balaio e os meninos, lugar de menino ou era na esteira ou era no balaio é , principalmente menininho, nenezinho pequeno, nenezinho pequeno fica num balaio pendurado pros bicho não comer ele, porque senão vem um bicho e come. Vem um um cachorrro, um porco, algum camarada vem e come o menininho. Então, os o eu e meus irmãozinhos todos, a gente passou nossos primeiros dias de vida dentro de um balaio. O balaio bacaninha pendurado no teto, algum irmãozinho ou priminho maior chegava lá e dava um empurrão na gente, dava uma balançada. Quando a gente ficava quietinho tava tudo bem, quando chorava ia lá dava mais um empurrão, balançava a gente. Esses balaios, esses objetos, balaios era uma coisa muito manjada, todos todos os mundo que tinha menino tinha que ter balaio. Cê não podia ter menino, como é que você ía cuidar dele? Você ía ficar com eles no colo? Ou largar ele só no chão? Então, esse negócio do balaio, eu me lembro de escapar do balaio, assim, de ficar rodando pelos quintais, de empurrar o balaio depois dos meus irmãos, das minhas irmãs que nasceram depois de mim. Porque antes de mim tem uns quatro, Ruth, Benjamin, é o Assir e eu sou o quarto, é. Aí, depois de mim tem, Miriam, Miraci, o Alair, o Elier. Então, nós somos nove. Eu sou um cara no meio, assim, da turma. E eu balançava esses mais novinho, que nasceram depois de mim, no balaio. Aí, depois quando tem muitos meninos, assim, tudo meio pequeno, tem que ter vários balaios. Esses balaios são umas coisas muito bacana, porque a gente além da gente andava no balaio pendurado no burro, ficava no balaio dentro de casa e depois a gente usava esses balaio pra pegar peixe, pra pescar. Usava as as peneiras, também, pra pegar peixe, pra pescar. E uma outra coisa que a gente aprontava com esses balaios, era armadilha pra pegar passarinho. Um balaio que não era muito grande, um balaio mais assim, arrumadinho. A gente enfiava uma vara lá no pé do balaio, assim, prendia, amarrava aquela varinha lá, aí puxava a vara pra cá, levantava o balaio aqui, assim, aí tinha um cortinho, assim, na madeira, no pau que vinha lá de baixo, a gente vinha, botava uma pequena pecinha aqui do chão, prendendo no na pontinha disso aqui com uma um barbantinho, assim, amarrando aqui, no pé dela lá preso aqui assim. E botava farelo e botava coisa ali pras bombinhas, pros passarinhos lá. Aí quando os passarinhos entravam lá pra comer canjiquinha, comer coisa lá de baixo do balaio, eles batiam o a asinha ou davam uma bicadinha perto daquela forquilha, aí ela derrubava o balaio em cima deles, prendia os passarinhos. Tipo de arapuca. Acho que muita gente da minha geração que não nasceu nas cidades. No caso. Na década de 50. Eu nasci em 53. O Brasil não era a essa coisa urbana que a gente conhece hoje. Em 53 o Brasil ou nós tínhamos as capitais. Os grandes centros, assim, urbanos, centros comerciais, ou as cidades históricas. No caso de Minas você tinha Diamantina, Ouro Preto, Mariana e tal. Conceição do Mato Dentro, Santana do Riacho. Aquelas cidades coloniais. Fora daquelas cidades coloniais era o sertão e a região que eu, que meu pai. Meu avô, minha mãe, minha turma toda é teve a experiência é da infância, foi é a infância em contato com a natureza, com os ciclos da natureza. Com as tempestades, com as chuvas, com curisco. A pedra que desce do céu arrebentando tudo. E com a natureza agindo sobre a nossa memória, sobre a nossa é compreensão do mundo de uma maneira tão poderosa, que a gente tinha uma, desde pequeninino a gente ia ganhando, assim, uma marcação forte do ritmo da natureza. Do tempo das águas, do tempo da seca, do tempo das “enxente”, das inundação e tanto que os meninos botavam o fogo no na lavoura, botava fogo no pasto, botava fogo no mato seco, porque os meninos sabiam, que aquela época, era a época, que a terra, o lugar onde eles viviam, tava seco. Por isso que eles botavam fogo, não era só um uma sacanagem dos meninos de va Vamos fazer uma sacanagem. Vamô fazer uma coisa errada, assim, botar fogo. Os meninos não , nós num nós nunca pensamos que a gente tava fazendo qualquer coisa errada, a gente botava fogo no mato, porque o mato tava seco e não tem melhor coisa do que tacar fogo no mato quando ele tá seco Depois vem a chuva e depois vem a enxente. A gente tinha certeza que depois vinha a chuva. A gente tinha certeza que depois vinha a inundação, vinha enxente e tudo. Então, a gente não não preocupava de botar fogo no mato. Hoje eu fico prestando atenção, Se o menino botar fogo no mato hoje, nossa! Não! Inferno! O menino não pode mais botar fogo no mato, porque eles não tem mais mato acabaram com o mato todo. No meu tempo tinha mato e de uma geração, duas, três gerações a as as coisas que são é formadoras da da identidade, da cabeça da pessoa, do ser, mudam tanto, mas mudam tanto e eu fico olhando de quando eu era menino. Agora que meu netinho Sian que tá com 2, 3 anos ou que meu filho Kremba que tá com 6 anos é o que o que eles experimentam com relação a liberdade, a liberdade de estar na natureza, de interagir, de mexer com a com as coisas da terra e de ter a impressão do mundo, assim, sobre eles com, sabe? A natureza potente com chuva, com vento, com seca. Essa esse contato, assim, ele tá sendo cada vez mais é distante. E eu tenho o desejo, que as crianças do mundo inteiro, possam se chocar com a natureza, e não, viver separados da natureza, porque a a eu acho que enquanto a gente puder se chocar com a natureza, nós vamos continuar tendo a memória dos antigos seres humanos, que são os nossos ancestrais. Quando a gente parar de se chocar com a natureza, nós podemos continuar sendo humanos, mais nós vamos ser muito diferentes desses antigos seres humanos que a gente aprendeu a amar, a a reverenciar eles pelas coisas boas que eles significaram pra gente, que eles signifacam pra gente. Eu fico pensando isso. Eu gostaria que as crianças todas pudessem ser mais é livres. Eu, agora que eu fiquei lembrando da minha da minha infância, assim, dessa liberdade é desgovernada que a gente viveu. Eu fico olhando, hoje a criança tem obrigação de ir na escola, hoje o o menino, o seus seus pais não botar o menino na escola, os pais vão ser responsabilizados, sei lá. Vai um um cara do governo, um oficial do governo chama a atenção da família, porque não botou o menino na escola. Totalmente. Quer dizer, a possibilidade dos meninos terem esse choque com a natureza e aprender desse choque com a natureza de verdade, transcender de alguma maneira, está cada vez mais controlada pelo modelo de de cultura, de sociedade que nós estamos no mundo inteiro é adotando. Voluntariamente ou involuntariamente tá todo mundo virando civilizado. No no na terra toda, no planeta todo.

P/1 – Desse desse gancho, como é que foi a sua experiência de aprender as coisas? Você aprendia com quem?

R – Com a natureza principalmente. Eu tava falando desse negócio do choque da natureza, porque agora que eu já sou é tô mais, digamos, crescidinho e passei a enfrentar é situações novas, que eu tinha que responder essas situações é, desafios é no mundo dos adultos. Do trabalho, por exemplo, o mundo do trabalho é O quê que é o mundo do trabalho? O mundo do trabalho é uma escala grande daquilo que eu vivi do meu choque com a natureza. Tudo que a natureza me ensinou me deu potencia pra eu resolver coisas agora que eu sou um camarada mais crescidinho. Quando eu era pequeno e andava com aqueles balaios, com aquela peneira, enfiando ela assim oh, na beira da da água, subindo o o igarapé assim, nas beiras do da água tinha vegetação que caía e tampava a água. Então, eu ia por ali, assim, batendo a peneira. Os meninos lá batendo pau e espantando os bichos. Dali daqueles daquelas beiradas de barranco podia, a gente podia dar a sorte de pegar uma traira bacanona, assim, mas também, podia sair uma cobra, podia sair uma sucuri, podia sair um bicho dali. Então, a gente tava treinando nossa inteligência, a gente tava treinando a nossa capacidade pra lidar com complexidade, com desafio. Se viesse uma cobra a gente tinha que fazer alguma coisa, se viesse uma traira a gente agarrava ela. Então, a gente tava ali. E a gente ia com os pezinhos descalços. Porque, eu devo ter usado mesmo, assim, um um calçado desse que pen prende o pé, a partir de 8, 10 anos, antes disso eu não botei esses trem pra me prender meu pé, eu andava com meu pé totalmente a von no chão e usei eventualmente, porque até até jovem, assim, idade já de rapazinho eu sempre tive a maior liberdade com o meu pé. Não queria ficar prendendo ele, nós os meus eu e os meninos que cresceram comigo, crescia com o pé livre. Pé solto. Agora as pessoas vivem todo mundo com o pé preso Aí, a gente andava de pé livre. Pé livre, cabeça livre. A gente andava pisando na pedra, pisando no chão. A gente ía por dentro da água metendo o pé, assim, na no no fundo e a gente sabia se o fundo era de matéria orgânica que tava podre, de material que tava ali. Aquelas coisas que caía de folha, de mato. Se a gente tinha areia ali debaixo do pé, se era uma lage de pedra. A gente ía pegando isso tudo sensação. Era o nosso pé que ía lendo o chão pra gente. Se a gente pegava o pé e metia o pé no estrepe, assim, numa pedra, num pau que furava o pé da gente. A gente tava aprendendo, aprendendo, aprendendo, aprendendo, aprendendo. Então, nós aprendemos tateando, tateando o mundo, tateando a terra. Os bichos! Sentindo o cheiro do mato, sentindo o cheiro dos bichos. Você ía enfiando aquele balaio, aquela coisa tão é tão assim, espontâneo dos meninos, de enfiar aquele aquela peneira dentro d’água, de jogar ela pra fora, assim, pra tirar os bichos que você pescava, que pegava. Aquela aquelas práticas todas eu sinto hoje. As vezes eu tô, sei lá, tô aqui no numa reunião, numa situação di diferente na política, uma situação que eu tenho que representar a minha família, a o meu povo ou o movimento social que eu tô engajado nele, ou um interesse de um empreendimento que eu tô envolvido com ele. Eu tenho que discutir com um camarada, um executivo de uma empresa, com o Ministro, com o camarada do governo, seja quem for, mas ele tem um ponto de vista eu tenho o meu. Ali naquele momento que eu tô ali confrontando aquela situação o menino vem e me dá a mão. O menininho do balaio, da esteira tá lá, assim, pendurado, montado num burro. É aquele menininho sabido, que chega e fala: Oh, passa a peneira assim, entendeu. Vira o balaio pra lá. Dá um pulo pra trás. Cai de cabeça. Então, eu tenho certeza que esses é esses momentos que a gente pôde viver de verdadeira liberdade, onde a gente corria o risco, inclusive, de se matar. Porque eu falei com vocês que alguns dos meninos morreram. Mas o maravilhoso disso é que a gente tava tão pleno de vida, que tudo quanto injeção que a gente pegou da vida ali, potencializou a gente, pra gente viver em qualquer lugar do mundo. Eu já fui pro Japão, eu já fui pra Europa, eu já fui pros Estados Unidos, já andei pela América Latina, já andei entrei em lugares que só doidão, só guerrilha mesmo é que anda, já andei também, já fui em reunião do Banco Mundial, no Congresso Americano, na ONU, na CIA, na KGB. Já andei nesses lugares todos e pra mim não tem importância nenhuma, porque o lugar mais bacana do mundo que eu já fui mesmo, foi dentro daqueles córregos, passar peneira, enfiar balaio, andar em balaio na ca no lombo de burro. Ficar enfiando cana na engenhoca, assim, com medo da cana puxar, enfiar a mão da gente lá pra dentro. Os bois puxando engenho, a gente enfiando cana. Os nossos tios pegando aquela garapa lá, aquelas vasilhas de garapa, jogando nuns “calderão” enorme, numas fornalhas gigante, que eles botavam um monte de lenha lá pra queimar. Fazendo melado, fazendo garapa, fazendo aquelas coisas. O cheiro da daquele material todo de cana de cana moída, o cheiro de café, esse cheiro de da natureza, mudando em cada época do ano. Na época da chuva, na época das águas. Na época das águas aquilo tem um cheiro, assim, que você sente que aquele cheiro, assim, igual de ficar no colo da mãe, aquele cheiro de tá mamando, assim, na época da chuva. Aí quando tá secão, assim, você sente que aquela coisa, assim, que é um tempo que te exige mais cheiro da terra exige de você mais prontidão, exige de você, assim, dormir menos, ficar mais esperto. Então, a terra dá um imenso é um manual de vida pro menino e privar os meninos, ainda mais no comecinho da vida deles, dessa desse choque com a terra, com a natureza é de alguma maneira antecipar esses adultos, esssas futuras gerações de adultos, que eu fico é pensando, que vão ser diferentes dos antigos seres humanos que nós aprendemos a amar, que a gente escutou as histórias deles. Eles corriam mais risco, eles morriam mais. Eles não eram tão garantidos. Você não tinha certeza nenhuma se o seu pai ía ficar vivo até vê você grande. Você não tinha certeza nenhuma se o seu avô ía ficar lá, assim, velhinho. Agora nós tamô vivendo no mundo das certezas. Todo mundo põe todo mundo no seguro, bota o cachorro no seguro, a avó no seguro, papagaio no seguro, o avô no seguro e fica essa perspectiva totalmente é neutra dum choque com a com a vida. Com a terra. Eu, mas depois que eu cresci mais, assim, fui pegando, aprendendo coisa com muita gente no mundo inteiro e muito interessado em aprender as coisas dos outros, eu tenho uma curiosidade sobre os outros. Pra mim, coisa mais importante que tem depois da natureza, do choque com a natureza, é o choque com o outro, com outro ser humano. Quando menino era com os outros meninos, com as meninas, com os bichos. E quando eu fui crescendo era com os outros seres, com os outros pensamentos. Aí eu li, quando Ferreira Goulart fez aquele, quando acabou o tempo da ditadura, aquela baixaria, anistia. Aí voltaram alguns camaradas interessantes pra cá e um deles foi o Ferreira Goulart. E o Ferreira Goulart quando voltou do exílio, ele publicou um trabalho lindo, que ele deve ter feito no tempo que ele tava exilado, que chamava: Dentro da noite veloz, Poema Sujo.

P/1 – Poema Sujo.

R – É, Poema Sujo.

P/1 – Lindo.

R – E Dentro da Noite veloz foi depois. Não é isso?

P/1 – É ele fez o Poema Sujo no exílio em Buenos Aires.

R – É, você leu? Você lembra?

P/1 – Lembro, maravilhoso.

R – Que ele fala dessa coisa dos meninos e depois de ver o mundo. Em São Luiz do Maranhão. Aí vai falando das coisas, da rua, do quintal. Aí quando eu li aquilo, eu falei: Será que todas as pessoas que viveram no tempo que eu vivi ou um pouco, aquele período ali de mudanças. Porque ho hoje o tempo tá tão, assim, cronometado cro cronometrado, que uma semana faz diferença, um mês faz diferença. Só que eu tô falando dum tempo em que eu posso dizer que eu era, do tempo do Ferreira Goulart, porque no tempo dele e no meu tempo, esse tempo que eu me me ligo a ele afetivamente. Ele era um tempo elástico, um tempo onde as pessoas podiam ser um do tempo do outro mesmo com diferença de 20, 30, 40 anos. Porque era um tempo elástico, agora não dá mais. Desse tempo folgado, que uma pessoa de 20, que um cara que nasceu 20 anos depois de você do seu tempo, num tem mais. Porque os menininhos com 4, 5 anos de idade já são capturados já por quatro paredes, enfiado em algum sistema de controle e ele não pode levar, ele não pode botar a mão num poraquê, assim, que é um peixe elétrico e levar um choque, ele não pode levar uma mordida de cobra, ele não pode levar uma picada de aranha. Então, essas possibilidades da gente é se chocar com a natureza, eu acho que é o registro mais é forte que eu fiquei da minha infância. Eu podia descrever coisas da infância, assim, descrever coisas que me passou na infância, mas eu acho que a descrição do do, o evento que aconteceu, ele tem importância simbólica. Agora, profundamente importante mesmo é o que ele deixou em mim. Porque a minha alma traduziu aquele evento. Quando alguém quebrou o braço perto de mim, quando o menino rachou a cabaça do outro, quando ele dormiu no carro de boi, quando a gente ía pegar os bichos, ou então, quando eu fui pegar peguei uma vara, assim. Tá lá, natureza não é égua. Meu irmão ganhou uma potrinha linda e aí ele botou o nome dela de Natureza, aí Natureza criou, ficou linda. Natureza, aquela éguona bonita comendo lá e aí os meninos corta ”cascaram” milho, jogaram aquele monte de palha, ela ficou lá comendo sabugo. Aí eu vi que tinha um monte de palha embaixo de onde ela tava, assim, aí eu peguei uma vara e fui puxar as palhas, igual puxa com rastelo, puxar as palhas de baixo dela. Ela deu um sinal pra mim que não tinha gostado, que ela balançou o rabo, assim, tipo espantando mosquito. Aí eu passei a vara de novo ela não teve dúvida, ela me meteu um coice cara bem aqui na boca do meu estômago. Ela tinha tanta força, lindona, fortona, o carinha, assim, aquele aquele sacizinho subiu, sem ar, sem nada Eu ficava querendo saber se eu ía morrer ou não. Aí caí lá. Aí todo mundo foi me socorrer. Carregar, dar água e tudo. Mas um coice bem dado, assim, no estômago, de um animal com saúde, legalzão, rapaz! É bom pra matar o moleque. Então que eu aprendi? Que minha alma capturou, daquele da natureza tão linda? Ela é amiga. Não é minha inimiga, que ela fez comigo? É igual uma mãe, a mãe pega e vai no pé do ouvido do filho. Hoje não pode, o juizado de menor vá vá vá não pode. Não bate no menino Não, quê é isso! Cara batendo no menino. Oh, o vizinho dele falou, escutou, ele puxou a orelha do menino. Tem um bando de débil mental por aí dizendo que criança não pode apanhar. A natureza me deu um coice na boca do estômago e me ensinou muito mais do que alguns anos de escola, de curso, de treinamento, workshop, oficina e outras asneiras que você pôde inventar. Com um coice ela me deu um grau freou a dar um um bom tempo da minha vida em chegar vivo aos quase 54 anos de idade, porque dia 29 de setembro é meu aniversário. Eu vou completar 54 anos e quanto mais eu consigo a contactar essa memória, eu brigo com as outras mais antigas, que são o que eu que eu reverencio, que são a memória, que é essa memória dos nossos antepassados aí eu vou é viajando, viajando e entrando nos mananciais de de visões e e presentes que são essas histórias antigas, que são as visões que os nossos avôs, que os nossos bisavôs, que os nosso antepassados deixaram pra gente. Aí é muito legal. Porque o o o igarapé que aquele menino bate peneira, ele tá ligado com o rio de memória muito grande, que é o rio de memória que os mais velhos foram é contando pra gente, compartilhando com a gente, ensinando. Os modelos, sabe? Resolução de coisas. Quando eu pensei o Memorial, por exemplo, o Memorial não é uma coisa que eu inventei. O Memorial, eu acho, que quando eu tava passando balaio no no no nos córreghinho junto com os meninos, eu e os meninos já tavam testando, testando. Há um há um tempo atrás, quando eu tava com uns vinte e pouco, trinta anos de idade eu tive contato com essa coisa de idéia de tecnologias. As diferentes tecnologias. Aí eu, naquela época eu fiquei pensando que eu queria muito fazer alguma coisa com relação as tecnologias tradicionais. Ainda nem tinha esse negócio de desenvolvimento sustentável, não era uma coisa tão assim, difundida. Mas na minha cabeça eu fui ficava pensando, assim? Aquele tanto de intrumentos, de coisas, que eu vivi na minha infância, que eu via todo mundo resolvia, as pessoas resolviam tudo, assim. Tinha comida, tinha garapa, tinha rapadura, tinha bebida, tinha aquelas farturas todas. Com aqueles engenhos simples, aquelas coisas que eles faziam de madeira, faziam de pedra. O moinho, o moinho d’água lá, a pedra triturando o milho, aquela coisa. Será que as crianças hoje sabe? Que com uma roda d’água, uma engenhoca com pedras friccionando uma com a outra tira farelo, tira fubá, tira milho, tira tira coisa pra ele é. Processa a o milho, processa outros produtos que ele pode usar. Então eu via tudo isso, eu ficava pensando: Eu queria fazer alguma coisa pra essas tecnologias tradicionais, ter ainda funcionalidade, ter função e ficar em lugares onde as as crianças, onde as pessoas pudessem chegar e ver essas coisas, como uma espécie de uma memória, assim. Isso é uma coisa que eu pensei há muito tempo atrás e não rolou, não tive tempo, fui fazer outras coisas. Aí agora, com a com a parábola. Do tempo passando, assim, você vai costurando as coisas, eu o caminho que eu vim fazendo, as pessoas que eu juntei, que se juntaram em torno de mim, que eu me juntei na ciranda deles e fomos andando junto é me deram elementos pra eu pensar nessa coisa de levantar um lugar onde essas histórias podem acontecer e onde isso pode ter uma animação em torno disso, e eu acho que lá no na infância batendo balaio é lá. Quando Vevéco tava conversando comigo, que ele ficava perguntando pra mim, mas Vevéco maravilhoso, ele é capaz de passar um dia inteiro, uma tarde inteira sem mudar de assunto. Querendo é entender quê que a gente ía fazer dentro desse Memorial. Aí ele gostava de cozinhar. Aí ele falou: E comida? Não vai ter? Não vai ter cozinha? Ele falava: Não vai ter? Tem que ter uma cozinha. Ah, claro que tem que ter uma cozinha. Ele falou: Mas a gente faz cozinha igual índio? Faz cozinha lá fora? Porque índio faz cozinha lá fora. A gente tem aqui a oca dele e a cozinha lá fora, é um tapiri, que faz lá fora, no giral. Aí eu falei: É Vevéco, a gente podia, tem as malocas grandes lá fora, a gente podia deixar lá perto daquelas malocas um lugar lá pra fazer esses tapiri aí pra cozinhar. E mas lá dentro também, a gente podia arrumar um lugar bacana, Vevéco? Porque, aí você, a sua turma, que que vai lá pro festival de...
P/1 – Tiradentes.

R – É, de Tiradentes. Fazer aqueles pratos incríveis. A gente podia fazer um forninho daqueles de barro e tal, ele: Não, nós vamos fazer e tal. Ficava conversando essas coisas.

P/1 – Ailton eu tô achando o seguinte, que pra primeiro tempo de conversa tá muito legal, eu já vi que o segundo vai ser essa longa jornada. Você vai contar essa história da migração de vocês. E mas que pra nós aqui já valeu muito. Foi uma grande viagem.

R – Que bom! Eu não sabia como que a gente ía fazer isso. Eu gostei de vocês me darem alguma, algum rumo, porque eu fiquei pensando assim: eu quero fazer isso lá no Memorial. Eu ficava pensando: Será que a gente vai deixar a pessoa assim, ele chega lá, ele fala sozinho ou tem que ter alguém que fica conversando com ele? E no fundo, no fundo é. Eu acho que essa coisa do gravar com os mais velhos, gravar com as pessoas. Eu não sei por quê, que eu acho, que mais eu tenho mais interesse em gravar com os mais velhos do que em gravar com os mais novos. Eu não sei por quê.

P/1 – Hã, hã. Claro, claro.

R – Porque eu fiquei pensando: Será que eu é quê tô com essa mania de querer gravar com os mais velhos? Em vez de gravar com o novo também? Mas eu fico assim, apaixonado, é pelo que eu ouço dos velhos. Quando eles começam. Esse negócio deles começar a me contar uma história, ele entra num outro numa outra onda, assim, aí ele vai, daí a pouco ele tá falando uma outra língua, num outro lugar, num outro planeta. Eu tô lá atrás com ele. Eu fico achando maravilhoso é aquilo, porque eles tiram a gente do do lugar. Quando eles tiram a gente do lugar e leva pra outro lugar, essa aventura é que é maravilhosa.

P/1 – Pois é. É porque como eles já tão navegando aí nesse grande rio na memória, só tem que tá ali pra dá uma puxadinha ali ou outra, mas a conversa é deles.

R – Olha aquele ali. Só você dá um toquinho.

P/1 – É. Porque não pode ser aquela coisa só do jornalista, que fica perguntando, perguntando, perguntando. Muda de assunto o tempo todo e...

R – Deixa ele falar.

P/2 – É muito mais ouvir, saber ouvir.

R – Olha, é tão maravilhoso isso é o estudo que eu venho tenho feito sobre memória, assim, é dessas desses rios de memória, que eu tava percebendo uma coisa que é o seguinte. É eu tenho um trabalho de rotina, junto com o governo do estado lá em Minas e, uma interlocução que eu tenho muito permanente, é com o pessoal da saúde, os profissionais de saúde, que trabalham junto comigo nas aldeias. E ano passado a gente fez um encontro só de Pajé, de curandeira, de parteira. Pegamos as parteiras, pegamos as pessoas, assim, aqueles raizeiros que nin nem na aldeia os outros não falavam que ele era raizeiro, que ele é na moita. Aí juntamô essa turma, assim, com o maior cuidado, assim, convidamô eles pra gente juntar e tal. E ficamô conversando, conversando e aí a gente foi percebendo algumas coisas. Algumas receitas, algumas práticas muito ancestral, muito antiga, você se você fizer uma investigação pra descobrir, como é que aquilo é transmitido? Você vai ter dificuldade. O canal. Porque a eu acho que quando você não presta atenção, você faz. Não tá tudo aí. É só prestar atenção, mas não é não. Tem uns canais, tem uns uns umas mágicas de passar aquelas coisas, porque a gente tava observando, por exemplo. Nu na mesma tribo, na mesma aldeia, tem aquelas família dali, aquelas família daqui. Aí alguém de fora pode achar que ali tem um conhecimento assim. Tem um conhecimento ali assim difuso sobre, por exemplo, plantas. Aí você chega nos véio” fala assim: Essa planta aqui, pra quê que serve? Aí ele te dá uma lista de coisas que ele sabe que aquela planta serve. Aí você pega um outro camarada, que é mais ou menos da mesma idade dele, só que mora lá naquela outra grota lá, ainda que da mesma tribo, pergunta pra ele, ele te dá uma lista totalmente diferente da que ele te deu. Aí você pensa: Uaí, será que esses caras é tão me enrolando? Não! É que aquele cara sabe que aquela planta é boa pra aquilo. Ele sabe que aquela planta é boa pra aquele outro, mas eles dois não juntam receita e não trocam receita. E quando ele for ensinar. Quando o Zé for ensinar, não vai ensinar pro filho daquele cara. Aquele cara vai ensinar pro filho dele, pro sobrinho dele. O Zé vai ensinar pro filho dele, pro sobrinho dele. Não tem esse negócio de você espalhar.

P/1 - E como é quê é quando isso apareceu quando juntou esses antigos conversando?

R - No começo ninguém falava nada. Ficou todo mundo, na tocaia um com o outro assim. É igual uma reunião de feiticeiro, você entendeu? Numa reunião de feiticeiro ninguém fala nada. Porque senão eles vão descobrir que você é feiticeiro. Aí a gente fica lá. Tem algum feiticeiro aí? Quem for feiticeiro levanta o braço. Entendeu? Aí então, aí eu tenho umas coisa, que eu fui sacando sobre esse negócio da memória, que foi me pegando, sou apaixonado por essa história.

P/2 – O que você define como rio de memória? Só pra gente acabar.

R – É uma imagem é , que eu é busco, pra é poder nomear aquele corpo. Um corpo, um verdadeiro corpo e material de memória, de potência assim, com registros que ligam esse choque da natureza com essa memória humana. Os seres humanos, independente da sua tribo, da sua cultura, compartilham uma memória, uma ima imagina um grande rio onde águas de vários lugares, a água da chuva, a água dos igarapés, a água das nascentes, a água dele mesmo, dos lagos vai se é integrando, vai se rolando, vai fazendo fluxo. Esse grande rio é o a experiência que pode. Ser é percebida nesses processos que a humanidade viveu até hoje, e que a despeito de todas as desgraças que a gente viveu, de guerra, matança. Que a história da humanidade é a história da matança. E apesar de tudo isso, esse rio de mamória sobrevive, passa por essas é desgraças todas e preserva pra esse momento que nós estamos vivendo a possibilidade de eu estar falando com você, de tá falando com o Zé, da gente tá conversando aqui, sabendo que tudo que a gente tá dizendo um pro outro o outro tá entendendo. Só tem essa, eu acho que só é possível isso, porque esse rio de memória, ele é tão poderoso, que ele é permite que a gente se entenda nesse nesse instante. Não é nem no futuro, nem no passado, entende? Não é nem no futuro, nem no passado, não é alguma coisa pro futuro, não é alguma coisa pro passado é essa possibilidade da gente ser, reconhecer de comunicar um ao outro. Já me lembrei desse negócio do passado e do futuro, porque tinha a ver com esse sentimento. Há um tempo, até uns dois, três anos atrás, veio um índio é Maia de lá da Guatemala, participar de um encontro que nós fizemos aqui no Brasil sobre sociedade da informação. Eram os índios da América Latina discutindo essas novas tecnologias e como é que agente ía se virar com elas. Se a gente ía se escondê delas ou se a gente ía agarrar elas. Aí esse parente, esse rapaz, cara já assim maduro, ele participou lá na Guatemala, que eles viveram muita guerra civil, muita coisa, ele tava participando de um grupo de pessoas que tavam trabalhando pra pacificar a sociedade. Esquadrão da morte, aquelas coisas nojentas tudo, ainda tava muito assim, ainda tem lá. Cortar a cabeça, tudo. Aí eles tavam é fazendo intervenção. Pra acalmar esse ambiente. E a gente sabe que a ONU, esses outros organismos, esses caras todos, eles tem os instrumentos deles. Tá rolando o maior cacete lá no Oriente Médio, eles mandam lá os a missão da da ONU, o soldado, não sei o que, ajuda humanitária e tal. Mas os Maia tem outros rios. Bebem em outros rios, ancestrais e tudo. Então, eles tem uns trabalhos pra lidar com essas coisas, que só pode só pode ser feito, porque eles tem ainda essa

P/1 – Mas Ailton, muito obrigado por esse primeiro tempo, e vamos fazer outro

R – Ah, maravilha. Obrigado de vocês terem me pro proporcionado essa vinda, lá das montanhas, pra encontrar com vocês aqui hoje e eu vou ver se agora de tarde eu consigo ver uma turminha.


FONTE: http://www.museudapessoa.net/MuseuVirtual/hmdepoente/depoimentoDepoente.do?action=ver&idDepoenteHome=11209&key=6135&forward=HOME_DEPOIMENTO_VER_GERAL&tipo=&pager.offset=5