sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

A humanidade que pensamos ser

Como conectar duas humanidades tão distantes: a que enxerga o rio como divindade e o que a enxerga como insumo?

CLAUDIA PENTEADO*
26 DEZ 2019 - 13H08 ATUALIZADO EM 26 DEZ 2019 - 13H08

Ailton Krenak demorou alguns anos para aceitar cruzar o oceano e ir a Portugal. Imagino o que representa para um homem indígena do Brasil, não só hoje mas em qualquer tempo, pisar na terra dos homens brancos que aportaram nos trópicos com suas ideias civilizatórias pré-concebidas, procurando enquadrar o que rapidamente rotularam de sub-humanidade atrasada e selvagem no seu próprio modelo. Mundo afora, no curso da história, homens brancos de diferentes origens (principalmente europeia) "evoluíram" e se "civilizaram" ao "dominar" a natureza e adquiriram uma espécie de licença para definir regras e comportamentos sobre o modo ideal e correto de existir no planeta.


Curiosamente, foi de palestras e entrevistas dadas em Portugal que nasceu uma pequena preciosidade em forma de livro, "Ideias para evitar o fim do mundo", com as ideias do ativista — hoje reverenciado por muitos — a respeito do Antropoceno, como alguns cientistas denominam a época que vivemos hoje, justamente definida como aquela em que os humanos substituíram a natureza como a força ambiental dominante na Terra. No seu pequeno grande livro, Krenak escancara o estranhamento diante desta humanidade — que definitivamente é outra, e não a dele — que se apartou da natureza, deixando de enxergar a si própria como parte dela e, portanto, de respeitá-la, para transformá-la em insumo.


"O nosso apego a uma ideia fixa de paisagem da terra e de humanidade é a marca mais profunda do Antropoceno", afirma Krenak. De alguma forma, a humanidade se apegou ao imaginário coletivo da terra como a grande mãe, com sua teta eterna provendo alimento ad-infinitum, farta, próspera e amorosa, sempre disponível.

O povo indígena Krenak, do qual faz parte o ativista, vive em uma área demarcada em Minas Gerais às margens do rio Doce, profundamente atingido pelo rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, em 2015. O rio hoje morto pelos humanos "civilizados" era sagrado para os Krenak. Chama-se Watu, avô do povo — uma pessoa, portanto, e não um recurso. Isso dá uma dimensão da distância entre valores dessas diferentes humanidades. "Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista", escreve.

O livro de Krenak é de grande valor por diversos motivos, e chamou especialmente a minha atenção sua reflexão sobre o desafio de conectar humanidades tão díspares — a que se considera a verdadeira humanidade superior à natureza e orientada pelos rumos calculados da ciência, e as sub-humanidades como os Krenak, que nunca se enquadraram nos moldes idealizados e cristalizados por centenas de anos. E eis que estamos aqui, todos juntos, humanidade e sub-humanidades, rumando em direção ao mesmo abismo.


Diante da iminência da queda — que já vem ocorrendo faz tempo, mas agora em ritmo mais acelerado — Krenak propõe a todos o uso de pára-quedas coloridos. É sua proposta simbólica para a humanidade que dominou o planeta, de reconexão com a natureza e com a humanidade dos Krenak, iniciada na tradição de sonhar. Krenak propõe que se avance para o lugar do sonho para visitar outra ordem de vínculo com o mundo, bem distanciada da metáfora de natureza criada para consumo humano. Para os "quase humanos", como costumam ser rotulados os Krenak, o mundo tem outra potência. E fazer a humanidade enxergar esta potência talvez possa ajudar a salvar a todos.

Krenak acredita que talvez a única maneira de promover alguma conexão entre humanidades tão díspares é a via da subjetividade, acessando lugares distanciados do racional, onde os afetos se conectam.

Diante disso, venho refletindo bastante sobre a viabilidade do chamado "novo capitalismo" que tanto se discute hoje. Seria um novo olhar por parte das pessoas e suas empresas, baseado em uma economia "sustentável". É interessante como Krenak chama atenção inclusive para o termo "sustentabilidade", criado pela humanidade com um sentido utilitário. Vale refletir sobre o que precisa, afinal de contas, ser sustentado. A exploração em nome do desenvolvimento e da economia capitalista? O ciclo exploratório interminável da natureza como recurso, sem que "a grande teta" seque jamais?


O novo capitalismo parte das bases do capitalismo inventado por essa humanidade que está aí, a mesma que criou o conceito de sustentabilidade — e que ainda sustenta a ideia da natureza como recurso, mesmo que de maneira mais consciente. E ainda se sustenta sobre a ideia da hegemonia e superioridade do homem — e de sua técnica, sua ciência, sua economia, sua produção, seu capital, seu lucro. É com isso que devemos lidar.

Penso sempre no imenso dilema de CMO's diante do desafio de buscar o equilíbrio entre entregar resultados e encontrar o propósito que justifique o que sua empresa faz, e um jeito de estar no mundo menos danoso ao meio ambiente, cuidando do impacto social que ela gera.

As mesmas empresas que no passado agiram como bem entenderam em nome dos seus objetivos financeiros e frequentemente contribuindo para excessos consumistas hoje se deparam com novas regras gerais no ambiente e, principalmente, gerações de "consumidores" que esperam algo diferente delas — e desconfiam um bocado desse tal de "marketing". O livro e o movimento "Good is the new Cool", de Afdhel Aziz e Bobby Jones, é resultado dessa busca pelo resgate de sentido da profissão do marketing e do dilema que a acompanha: como ser bons profissionas e bons cidadãos, ao mesmo tempo?


Certamente hoje a maioria de CMO's e profissionais sérios envolvidos na missão de dar voz às marcas se preocupa em causar algum impacto positivo ao planeta, e vem procurando fazer o que é possível, com altíssimas doses de frustração envolvidas. Fundamental, mesmo, é enxergar seu quinhão de responsabilidade para com o abismo diante do qual nos encontramos e com o qual todos contribuímos, cada um a sua maneira. Como diz Krenak, encomendamos há 200, 300 anos este mundo em que estamos vivendo. O pacote chegou, e está aqui. É com ele que temos que lidar. E a pergunta é: que mundo estamos empacotando agora, para deixar para as próximas gerações? Como diz Krenak, "a gente vive reclamando, mas essa coisa foi encomendada, chegou embrulhada e com o aviso: 'depois de abrir, não tem troca'."

Sempre bom lembrar e refletir sobre a humanidade que pensamos ser, e a humanidade que queremos ser. Feliz 2020!

*Claudia Penteado é jornalista, estuda comunicação, filosofia e literatura, mora no Rio de Janeiro e acredita em capitalismo consciente. É leonina, mãe da Juliana e prefere ler livros em papel.

FONTE: https://epocanegocios.globo.com/colunas/Marketplace-ideias-e-inovacao/noticia/2019/12/humanidade-que-pensamos-ser.html