Reza a lenda que, quando o folclorista e etnógrafo brasileiro Luís da Câmara Cascudo nasceu, sua mãe derramou na água do primeiro banho um cálice de vinho do Porto, com a intenção de lhe conferir saúde, enquanto o pai teria mergulhado um patacão de prata do tempo do império para garantir fortuna ao filho. Dona Ana Maria da Câmara Cascudo era, como se diz hoje, mãe e esposa full time, e o Coronel Francisco Justino de Oliveira Cascudo, além dos ofícios do coronelado, acumulava a função de comerciante. A história de Câmara Cascudo, provavelmente, não difere tanto da de outros meninos de mesma classe social de sua época. No entanto, um olhar mais acurado para o episódio narrado mostra que na casa dos Cascudo a tradição popular estava inserida nos rituais do cotidiano. As histórias que Câmara Cascudo viria a contar anos depois em diversos livros-registros da memória popular já estavam semeadas na meninice vivida em Natal (RN), entre a beira-mar e o sertão.
Câmara Cascudo é para a tradição popular brasileira uma espécie de griô, um inventariador e participante ativo, capaz de transmitir de geração a geração os saberes e fazeres culturais que, de outra feita, teriam sido esquecidos. “Andei e li o possível no espaço e no tempo. Lembro conversas com os velhos que sabiam iluminar a saudade. Não há um recanto sem evocar-me um episódio, um acontecimento, o perfume duma velhice. Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia. Velhas árvores e velhos nomes, imortais na memória”, diz Cascudo no livro Província, de 1968.
Na prática, verificamos a partir de diversas experiências no campo da cultura que a tradição permanece viva enquanto tem significado para determinado grupo, que transmite seus saberes e fazeres por gerações. Sem a anuência e iniciativa do grupo, a tradição perde a razão de ser e se esgarça até o completo esquecimento. É, justamente, com o intuito de evitar essa perda que instituições governamentais trabalham em conjunto com a sociedade para a identificação e salvaguarda do patrimônio.
Um exemplo concreto dessa união é o caso do jongo no Sudeste. Aos poucos, a manifestação foi desaparecendo das comunidades descendentes de escravos da região, por razões diversas que, na maioria das vezes, tinham raízes socioeconômicas. Colaboraram para o esquecimento a migração de seus praticantes e os processos de urbanização; o preconceito contra as práticas culturais afro-brasileiras; e a superposição de expressões de maior apelo no mercado de bens simbólicos. No entanto, ainda havia uma chama mantida por comunidades jongueiras que valoram o jongo como elemento de construção e afirmação de sua identidade, como “conjunto de saberes ancestrais, testemunhos de sofrimento, mas também de determinação, criatividade e alegria dos afro-descendentes”, conforme explica o prefácio do livro Dossie_Jongo, editado pelo IPHAN. Foram essas comunidades que deram ensejo para a ocorrência do Inventário Nacional de Referências Culturais – InrC, desenvolvido pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular – CnfCp do IPHAN, que balizaria a posterior proclamação, em 2005, do jongo como Patrimônio Cultural Brasileiro.
Segundo o Superintendente do IPHAN no Rio de Janeiro, Carlos Fernando Andrade, a mobilização e organização dos praticantes do jongo, com especial atenção para o Pontão de Cultura do Jongo/Caxambu, foram de suma importância para a salvaguarda do patrimônio. “O jongo ainda é uma prática malvista em determinadas regiões. Mas a mobilização popular e o trabalho desenvolvido no Ponto de Cultura têm contribuído muito para o fortalecimento da própria manifestação, além de elevar a auto-estima de seus praticantes”. As palavras do Superintendente completam o editorial do livro Jongo no Sudeste, assinado pelo Presidente do IPHAN, Luiz Fernando de Almeida, sobre a função do IPHAN. “Ao tornar públicos processos e resultados desse trabalho, o IPHAN contribui para o reconhecimento e o respeito a esse patrimônio pela sociedade brasileira. Pedindo licença ao jongueiro velho, com este livro saudamos a todos os jongueiros novos. Saravá!”.
Com relação ao Inventário Nacional de Referências Culturais, a cientista social do IPHAN-MG, Corina Moreira, alerta: “o inventário atua como um poderoso instrumento para a mobilização social, mas requer cuidados por parte dos especialistas responsáveis pela pesquisa. Quando lançamos um olhar sobre os bens de natureza imaterial, interferimos na comunidade detentora do saber. Por isso, é preciso seguir metodologias que garantam o equilíbrio entre as demandas da comunidade e as ações de reconhecimento”, diz.
Sobre a salvaguarda, também é importante ressaltar que não se trata apenas do congelamento de tradições como mero instrumento de memória. Enquanto fizerem sentido para seus praticantes, as manifestações culturais se mantêm vivas e em constante evolução, se adaptando aos novos tempos, o que permite a manutenção da identidade e da resistência cultural, além da renovação do universo simbólico dos grupos sociais envolvidos. Essa ideia é muito bem concretizada pelo jornalista e representante da tribo indígena Krenak, Ailton Krenak, que traz à tona a memória de uma cantiga de sua infância. “Meninos e meninas se reuniam no terreiro, no fim do dia, para cantar os versos ‘o meu pai mandou dizer que se eu não achar essa agulha vai levar você. Pra trás, pra trás, uma agulha que se perde não se acha mais’. A história da agulha é simbólica e faz a gente se perguntar sobre as perdas culturais que tivemos, sobre as perdas de memória que tivemos. A possibilidade da tradição nos religar ao futuro só acontece quando nos reconhecemos nela”, afirma Krenak.
Abaixo, selecionamos um trecho autoral de Câmara Cascudo, publicado no livro Província:
“Nasci na Rua das Virgens e o Padre João Maria batizou-me no Bom Jesus das Dôres, Campina da Ribeira, capela sem tôrre mas o sino tocava as Trindades ao anoitecer. Criei-me olhando o Potengi, o Monte, os mangues da Aldeia Velha onde vivera, menino como eu, Felipe Camarão. Havia corujas de papel no céu da tarde e passarinhos nas árvores adultas, plantadas por Herculano Ramos. Natal de noventa e seis lampiões de querosene. Santos Reis da Limpa em janeiro. Santa Cruz da Bica em maio. Senhora d’Apresentação em novembro. Farinha de castanhas e carrossel. Xarias e Canguleiros. Natal que se apavorou com o holofote, enchendo as igrejas de bramidos e arrependimentos. Auta de Souza embalou-me o sono. Pedro Velho pôs-me na perna. Vi Segundo Wanderley declamar. Ferreira Itajubá cantando. Alberto Maranhão passeando a cavalo, manhã do domingo. Tinha treze anos quando veio a luz elétrica. Festas no Tirol. Violão de Heronides França. Livros. Cursos. Viagens. Sertão de pedra e Europa.
Nunca pensei em deixar minha terra.
Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos , sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço. Percepção medular da contemporaneidade. Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo. Intimidade com a velha Silvana, Cebola quente, alforriada na Abolição. Filho único de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral. Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma unidade com sua gente. Foram os motivos de minha vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais”.
Priscila Fernandes / blog Acesso
Fonte: http://www.blogacesso.com.br/?p=3319
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