sexta-feira, 17 de novembro de 2017

“Se eu fosse Iracema” faz curta temporada no Centro Cultural da Justiça Federal

Interpretado por Adassa Martins, monólogo do 1COMUM Coletivo volta aos palcos do Rio de Janeiro as quartas e quintas às 19h

Espetáculo inspirado em carta escrita pelos guarani e kaiowá aborda mitos, rituais e a situação indígena no Brasil



Depois de temporadas bem-sucedidas no Sesc Tijuca, no Sérgio Porto e no Sesc Ipiranga (SP), além de circular por várias cidades e festivais brasileiros, “Se eu fosse Iracema” volta à cidade para curta temporada no Centro Cultural da Justiça Federal de 30 de novembro a 21 de dezembro, as quartas e quintas, às 19h. O espetáculo surgiu a partir de uma carta escrita em 2012 pelos guarani e kaiowá em que eles pediam que se decretasse sua morte em vez de tirá-los de suas terras. O fato chamou a atenção de Fernando Nicolau e Fernando Marques, diretor e dramaturgo, respectivamente, e ambos começaram uma intensa pesquisa acerca da questão indígena no Brasil. A eles juntou-se a atriz Adassa Martins e os três desenvolveram o primeiro espetáculo do 1COMUM Coletivo, que estreou em abril de 2016. Desde a estreia, o espetáculo tem tido excelente repercussão junto ao público e à crítica. Foi escolhido como melhor figurino pelos Prêmios Shell, APTR e Cesgranrio no ano de 2017, além de indicações para Adassa Martins na categoria atriz no Prêmio Shell, APCA e APTR, e para Fernando Marques na categoria autor no Prêmio APTR.

A peça lança mão de materiais como trechos da Constituição de 1988, falas inspiradas em discursos de ruralistas ou do poder público, mas estrutura-se fundamentalmente em ritos e mitos de passagem ligados às várias fases da vida. “Escolhemos trabalhar o ciclo da vida: a origem do mundo, a infância, a adolescência, a fase adulta na figura da mulher e o ancião, na figura do pajé chegando ao fim do mundo”, explica o diretor. Esse ciclo, no entanto, não é colocado de forma linear e traz referências a etnias diversas. Fernando Marques ressalta que essa variedade “foi fundamental, porque não queríamos falar sobre uma ou outra etnia, mas buscamos um olhar abrangente sobre os povos originários, que são muitos e diversos”.

Entre as referências, estão ainda os trabalhos de autores, artistas, pesquisadores, ativistas e, claro, indígenas, como André D’Elia, Ailton Krenak, Betty Mindlin, Bruce Albert, Daniel Munduruku, Darcy Ribeiro, Davi Kopenawa, Eduardo Viveiros de Castro, José Ribamar Bessa, Manuela Carneiro da Cunha e Raoni Caiapó. Encontros e conversas com estudiosos e lideranças indígenas também fizeram parte do processo.

O espetáculo não tem a intenção de levantar bandeiras, mas de provocar a reflexão sobre um assunto de extrema importância. Adassa Martins ressalta a necessidade “de ecoar essas vozes tão caladas desde 1500. Olhamos tão pouco para os índios, e as questões permanecem as mesmas até hoje”. A atriz conta ainda sobre como desenvolveu uma interlíngua: “Ouvi os pajés e diversos índios falando em documentários e percebi os fonemas mais presentes. A ideia é criar uma fusão do português com uma língua indígena”. Além da interlíngua, há ainda trechos em guarani, traduzidos pelo cineasta indígena Alberto Álvares Guarani.

O figurino de Luiza Fardin, assim como o cenário de Fernando Nicolau, aposta no uso de poucos elementos, mas bastante eloquentes, criando um diálogo com a devastação da natureza, das terras indígenas e do próprio índio. A luz, assinada também por Nicolau, cria ambiências que ressaltam a diversidade de momentos e climas propostos pela dramaturgia e pela direção e que se materializam nos vários tons da atuação de Adassa Martins. A trilha sonora original de João Schmid evidencia transições importantes do espetáculo.

FICHA TÉCNICA

Intérprete: Adassa Martins. Dramaturgia: Fernando Marques. Direção: Fernando Nicolau.

Iluminação e cenografia: Licurgo Caseira. Figurino e caracterização: Luiza Fardin. Trilha sonora original e desenho de som: João Schmid. Preparação vocal: Ilessi.

Direção de arte da comunicação visual e projeto gráfico: Fernando Nicolau. Escultura do busto: Bruno Dante.Fotografia: Imatra. Caracterização das fotos: Luiza Fardin.

Assistente de direção: Luca Ayres. Assistente de figurino: Higor Campagnaro. Cenotécnico: André Salles.Aderecista: Derô Martin.

Produção executiva: Clarissa Menezes. Realização e produção: 1COMUM Coletivo. Idealização: Fernando Nicolau e Fernando Marques

SINOPSE: A peça propõe um olhar sobre o universo indígena brasileiro, transitando entre a tradição a tradição e a sua situação atual. “Se eu fosse Iracema” usa referências que vão de mitos e rituais de várias etnias originárias do país a aspectos como a demarcação de terras e outros direitos fundamentais muitas vezes negligenciados.

SERVIÇO

“SE EU FOSSE IRACEMA”

Temporada: de 30 de novembro a 21 de dezembro – quartas e quintas, às 19h.

Local: Centro Cultural Justiça Federal (CCJF) – Av. Rio Branco 241, Centro. Tel.: 3261-2565

Ingresso: R$ 20 (inteiro) | R$ 10 (meia). Bilheteria: das 16h às 19h

Classificação etária: 14 anos. Duração: 60 minutos




FONTE: https://www.sopacultural.com/se-eu-fosse-iracema-faz-curta-temporada-no-centro-cultural-da-justica-federal/

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Um grito na paisagem

Morris Kachani
06 Novembro 2017 | 13h46
Por Paula Forster

Rio Doce: Avô. Um ancestral. O Watu. “Oh Watu Mirare re, oh Rio de águas boas”.

Samarco: Um raio súbito que se abateu sobre a nossa aldeia, sobre as vidas e a memória desse povo que vive à margem do Rio.

Barragem de Fundão: Um lugar muito distante e remoto, mas que afetou o nosso dia a dia nos últimos dois anos de uma maneira decisiva para o futuro.

Crime Ambiental: Uma ideia de abismo, que não tem resposta, sem eco.

Desastre Ambiental: Um grito na paisagem.

Poder: Uma coisa monolítica. Um bloco obscuro.

“É uma luta da vida inteira, defendendo, tentando fazer com que as pessoas aprendam a ver com o olhar do povo indígena estes rios, estas florestas, montanhas que vêm sendo devoradas pela mineração e garimpo”.




Para Ailton Krenak, líder indígena de 64 anos completados neste ano e nascido no vale do Rio Doce, em Minas Gerais, o sentimento depois da maior tragédia socioambiental da história do Brasil, que completou dois anos no último domingo, dia 05, é de luto.

Em referência ao rompimento da barragem de Fundão (barragem de rejeitos de mineração da Samarco, controlada pelas empresas Vale do Rio Doce e BHP), em Mariana, Minas Gerais, que matou 19 pessoas e devastou a vida de milhares, Krenak diz: “Um sentimento inexplicável, que não dá para verbalizar. É uma perda profunda. Um abismo sem explicação”.

Foram estas as imagens que permearam o nosso começo de conversa, enquanto Ailton visitava o pavilhão “Yanomami”, da fotógrafa Cláudia Andujar, no Instituto Inhotim, localizado em Brumadinho, Minas Gerais. “Uma das exposições mais significativas e representativas para a luta da sobrevivência indígena. Visitá-la é sempre um aprendizado”, comenta.

Ao fundo de sua voz, a sonoridade da mata e o assobio de pássaros, enquanto por aqui, o barulho do motor de carros. O que unia os dois cenários era um aparelho de celular, não sem antes ter sido a vontade de compartilhar as histórias que Ailton tinha para contar.

Ailton é uma liderança indígena histórica, reconhecida nacional e internacionalmente. Ficou mais conhecido em 87, quando discursou na Assembleia Nacional Constituinte com o rosto pintado de preto, em sinal de protesto aos retrocessos dos direitos do seu povo.

Na entrevista, falamos sobre as mudanças na essência dos afazeres cotidianos da aldeia Krenak, desde aquele dia 05 de novembro de 2015: “agora as 120 famílias que vivem dentro da reserva indígena, no município de Resplendor (afetado pela lama), estão na margem esquerda de um Rio que eles não podem nem pegar um balde de água”.

Os Krenaks pertencem ao grupo indígena “Botocudos do Leste”, nome que foi dado pelos portugueses àqueles que utilizavam um enfeite (botoques) nos lábios e nas orelhas. Eles são conhecidos também como Aimorés, sendo esta a denominação dada pelos próprios Tupis. À época do Brasil Colonial, mais precisamente em 1808, muitos deles foram massacrados com a “Guerra Justa”, declarada por D. João VI, que durou décadas. Os Krenaks são os sobreviventes deste grupo e vivem hoje em uma reserva criada pelo Serviço de Proteção dos Índios – FUNAI, em Resplendor (MG), de cerca de quatro mil hectares.

*

“Para nós, o Watu (Rio) é uma entidade, não uma bacia hidrográfica igual os brancos falam. Assim como lá na Índia tem o Rio Ganges, que é sagrado e as pessoas entendem isso, nós temos o Watu, que sustentou durante muito tempo a nossa existência e o nosso imaginário. Mas aqui no Brasil, rios podem virar esgoto, porque eles são vistos só como um corpo de água”.

“As crianças hoje olham e perguntam para os pais: “O Rio morreu? O Rio acabou?”. Para uma infância isso é uma marca que não tem como recuperar”.

“Olhar para a terra, o rio e a floresta como mercadoria é um engano muito grande que vai nos enterrar a todos”.

“Começou o caminhão pipa, a privação, a falta de perspectiva em relação ao dia de amanhã, ao futuro. Começou a aflição das pessoas sobre onde e como viver sem o Rio. Os animais que antes podiam circular, agora estão confinados, precisam ser atendidos por veterinários e receber ração de fora. Não tem mais agricultura”.

“Se a gente não estivesse vivendo na situação política que o país está, a gente teria outra configuração deste problema. Mas como estamos todos sendo assaltados, o Rio Doce é apenas mais uma vítima desse assalto monumental”.

“Como o povo indígena vive de uma maneira que expressa o direito coletivo, ele fica muito exposto a essa violência colonialista que quer devastar tudo”.

“Quando as pessoas dizem que os índios são atrasados ou que não querem o progresso estão sendo estúpidas, não sabem sobre si mesmas e querem ensinar os índios a se organizar, a produzir, a sobreviver. Tudo isso é preconceito, é racismo”.

*

O que mudou desde o rompimento da Barragem de Fundão?

A rotina, o cotidiano. Acabaram as saídas de casa para ir ao Rio mergulhar, tomar banho, lavar roupa, cozinhar, pescar, sentar e buscar água. Começou o caminhão pipa, a privação, a falta de perspectiva em relação ao dia de amanhã, ao futuro. Começou a aflição das pessoas sobre onde e como viver sem o Rio. Os animais que antes podiam circular, agora estão confinados, precisam ser atendidos por veterinários e receber ração de fora. Não tem mais agricultura. Uma cerca de 19 quilômetros separa o corpo do Rio das casas, da vila e das pessoas, que estão confinadas em uma paisagem em suspenso. Mais de cem famílias de uma hora para outra ficaram penduradas em uma pergunta: quem é que vai pagar por isso?

Os primeiros meses foram de protestos, denúncias e reclamação. Depois, o Ministério Público e os representantes das empresas começaram a aparecer. Era preciso ver como cadastrar todo mundo no programa emergencial, um acordo das corporações com o governo para a montagem de estruturas que substituiriam o acesso à água do Rio por suprimento de água vinda de fora, a entrega de cesta básica, o reordenamento da criação de animais, o cotidiano que precisava ser reajustado e a ajuda financeira às famílias.
Dois anos sem o Rio Doce. O que isso representa para o senhor?

Acho que mais importante é o que representa para todo mundo, para essas centenas de famílias…

Sim, o que representa para a Aldeia Krenak?

Uma ruptura muito grande com o cotidiano, com a memória que as pessoas tinham daquele lugar e a insegurança que está prevalecendo na rotina.

O senhor imaginava que isso pudesse acontecer um dia?

Há muitos anos eu venho reclamando da falta de respeito das pessoas com o Rio Doce, porque a instalação da cidade, o lançamento de esgoto e a construção das barragens vêm acontecendo em um acumulado de mais de 50/60 anos. A gente vem percebendo um crescente de agressão contra o corpo do Rio, que chegou ao absurdo de ficar em coma. Mas é claro que nenhum de nós previa um desastre com esta força, capaz de tirá-lo do nosso alcance. Eu imaginava que ele estava sendo assaltado a prestações, mas não que de uma hora para outra ele iria ser sequestrado.

Qual era a luta pela preservação do Rio antes do desastre?

Há mais de vinte anos a gente começou a lutar pela recomposição das nascentes, da mata, da vegetação e da biomassa, tentando combater o que poderia ameaçar o ecossistema do Rio. Nós lutamos muito contra o licenciamento da construção da última barragem, na usina hidrelétrica de Aimorés, inaugurada em 2005, mas ele foi feito à revelia dos Krenaks e de outras comunidades de ribeirinhos. Nós sabíamos que aquilo era um grave ataque, porque ia mudar o fluxo das águas, o sistema da vida do rio e dos peixes. Os pescadores reclamaram, mas não adiantou nada. E se o Rio não estivesse em coma, ele ia continuar sendo picotado por barragens: tinham mais cinco ou seis projetadas para a região do médio Rio Doce.

O significado da terra, do rio, que são fortes e emblemáticos para vocês, foram ignorados?

Mas o rio e a terra deveriam significar a mesma coisa para toda a humanidade, não só para os índios, mas para os brancos, os negros… Olhar para a terra, o rio e a floresta como mercadoria é um engano muito grande que vai nos enterrar a todos. O crime que aconteceu foi uma espécie de suspensão da ideia de que o Rio é um organismo exposto à violência, que pode ser usado de toda maneira. Para nós, o Watu é uma entidade, não uma bacia hidrográfica igual os brancos falam. Assim como lá na Índia tem o Rio Ganges, que é sagrado e as pessoas entendem isso, nós temos o Watu, que sustentou durante muito tempo a nossa existência e o nosso imaginário. Mas aqui no Brasil, rios podem virar esgoto, porque eles são vistos só como um corpo de água. O Rio Doce estava virando um Tietê. Ao longo prazo, talvez, ele fosse ficar igual.

Como o senhor vê o posicionamento da Samarco?

Não só da empresa, mas de todo o sistema de controle ambiental, das agências de licenciamento, governo do Estado, governo Federal, Ministério do Meio Ambiente, Ibama, ICMbio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e todas as agências que deveriam ter alguma responsabilidade sobre este evento são omissas, inclusive a Samarco, a Vale do Rio Doce e a BHP. Esses consórcios que exploravam o Rio agora ficam paralisados, sem demonstrar uma consciência sobre a responsabilidade que têm. Eles agem por obrigação e pressão. Isso nos deixa muito preocupados, porque como as agências do Estado estão todas sem forças para atuar, o interesse privado acabou ficando com o protagonismo desta história. É um absurdo que o governo brasileiro não tenha nada para dizer sobre um Rio que de uma hora para outra é anulado da nossa paisagem. Nós falamos que o Watu está em coma. Mas tem gente que já falou que ele está morto.

Como o sr. avalia a atuação da Fundação Renova, criada pela Samarco para gerenciar a tragédia, continua com as suas atividades em operação?

Algumas ações emergenciais vêm sendo executadas pela Vale, Samarco e BHP desde o mês de dezembro de 2015, com entrega de água potável, suprimentos para as famílias atingidas e algumas obras de infraestrutura como pontes, bueiros, reservatórios de água. Além de pagamentos de valores em conta de famílias que são assistidas em caráter emergencial.

Nestes dois anos, a Samarco fez algo de bom? Teve alguma atitude positiva?

A Samarco é bode expiatório da Vale e da BHP, que ocultam responsabilidade direta pelo crime ambiental deixando recair sobre a operadora local todo ônus desta tragédia sem precedentes.

O senhor é esperançoso?

Eu não tenho dúvidas de que o Rio tem mais capacidade de resistir do que os viventes da beira dele. Daqui a trinta, cinquenta, cem anos, ele pode ter conseguido fazer a sua autolimpeza, mas a vida das pessoas que vivem ao longo dos 650 km de extensão dele, os pescadores, as tartarugas marinhas… eles vão ficar afetados por muito tempo e talvez a recuperação não seja igual ao do corpo do Rio.

As crianças não vão conseguir usufruir do Rio da mesma forma que o senhor usufruiu.

As crianças hoje olham e perguntam para os pais: “O Rio morreu? O rio acabou?”. Para uma infância isso é uma marca que não tem como recuperar. Dizer para uma criança que vivenciou uma violência, que viu o Rio ser roubado da sua infância, que daqui uns vinte, trinta, quarenta anos, ele vai estar restaurado, mesmo que isso fosse verdade, é uma promessa que não vai mais alcançar o tempo dela. A criança não existe mais neste tempo. Se ela vê esse Rio na vida adulta, nem ela é a mesma pessoa, nem o rio é o mesmo.

Comenta-se que a Samarco já sabia de algumas fissuras na barragem…

Eu não acompanho a história de funcionamento deles, como eles obtêm o licenciamento e como se autofiscalizam. Mas o que depois desse grave crime ficou sendo denunciado é que eles se omitiram da responsabilidade de fazer o monitoramento e as necessárias manutenções da barragem, que eles sabiam que poderia se romper. Eles, inclusive, teriam incluído isso no programa, de que se eventualmente a barragem se rompesse, ela seria estabelecida em um segundo ponto. É horrível imaginar que eles poderiam matar uma vila como aquela de Bento Rodrigues e depois transformar outro lugar em contenção da barragem, ampliando a capacidade em cima da história e da vida de dezenas de pessoas que foi avassalada pela lama. Se o cálculo deles era de que iriam assaltar aquela vila e conseguiriam resolver isso como se fosse um problema doméstico, agora eles têm um Rio inteiro na conta deles e eu não sei como eles vão responder isso para a humanidade: que responsabilidade social e ambiental a Samarco tem para poder continuar operando? Ela deveria ser questionada sobre isso. Não pode ter uma licença de operação social, depois de ter cometido um crime deste.

Ela continua operando?

Sobre as operações da Samarco, eu não posso responder, mas creio que ainda não teve renovada sua licença de operação. Ainda está sob investigação.

Foram três distritos rurais completamente devastados e…

E centenas de munícipios que tiveram a realidade socioeconômica totalmente devastada também. Pensar somente o desastre da lama sobre a vila e sobre a cidade é ignorar o impacto que ela teve sobre a vida de milhares de pessoas, chegando até o mar, até o litoral, atingindo a vida marinha, o mangue. Não é brincadeira não. É uma coisa muito séria. Se a gente não estivesse vivendo na situação política que o país está, a gente teria outra configuração deste problema. Mas como estamos todos sendo assaltados, o Rio Doce é apenas mais uma vítima desse assalto monumental.

Como você define esta situação política?

Ausência de governança.

E a configuração do problema à qual o senhor se refere, qual seria?

A gente teria as agências de regulação, de licenciamento e monitoramento atuando ativamente e identificando os responsáveis. Não deixariam que toda a diretoria desta empresa andasse solta por aí, como se não tivesse praticado nenhum crime contra a vida, contra a natureza e contra o meio ambiente. Multas não pagam a vida que eles tiraram.

O senhor, que luta desde a década de 80 pelos direitos dos povos indígenas, enxerga como esta situação?

Eu defendi o capítulo dos direitos dos índios que está na nossa constituição de 1988, mas ele tem sido tão desmerecido que eu continuo lutando pelos mesmos direitos até hoje. De dois ou três anos para cá, a situação política do Brasil se deteriorou tanto que a demanda dos índios por seus territórios deixou de ser prioridade, tanto da FUNAI quanto do Ministério da Justiça. Virou um conflito entre os interesses dos índios e das outras especulações de terra, como a mineração e o agronegócio, que está avançando em cima das terras indígenas de uma maneira brutal, enquanto o Estado está desinteressado e descompromissado em fazer as demarcações.

Existiu algum período em que essa questão da demarcação era vista com mais prioridade?

Sim. Na década de 90 e a última década até 2010 ainda não havia tantas contestações de outros setores em relação à demarcação das terras indígenas. De uns oito anos para cá, essa questão passou a ser judicializada. Com a PEC 2015 pretende-se colocar um marco temporal para o reconhecimento das terras, que só poderão ser demarcadas se os índios já estiverem neste local antes da constituição de 1988 ou até este ano. Aí vira uma disputa com os fazendeiros.

No tempo de hoje, o que é ser índio no Brasil?

É ter que lutar a cada dia para fazer se respeitar. Proteger a vida, proteger a aldeia, proteger a nossa própria segurança pessoal. Manter-se vivo. Tentar proteger os lugares onde nós vivemos – o rio, a floresta – com a nossa própria vida, porque o Estado está totalmente rendido. É uma situação de “salve-se quem puder”.

O direito à vida, o direito de ir e vir e de se expressar estão todos em suspenso. É uma disputa muito grande do interesse privado sobre o interesse comum. Como o povo indígena vive de uma maneira que expressa o direito coletivo, ele fica muito exposto a essa violência colonialista que quer devastar tudo. Belo Monte, lá no Xingu; os índios Kaiowá Guarani, no Mato Grosso do Sul; os Guaranis, no Pico do Jaraguá, em São Paulo. Tudo isso são exemplos gritantes da violência que tem sido feita contra o interesse coletivo dos índios.

E a identidade do povo indígena hoje no Brasil? Como fazer para resistir?

Enquanto a gente tiver memória de quem somos, nós vamos manter a nossa identidade a custo de muita resistência, de muita luta. A luta pela terra é uma expressão desta identidade. O índio luta porque tem uma identidade com essa terra, muito antes de se chamar Brasil. Nós fomos invadidos e temos que resistir. E tem outras questões que devem ser respeitadas também: a gente não tem que ser obrigado a se integrar no sistema de desenvolvimento do branco. Quando as pessoas dizem que os índios são atrasados ou que não querem o progresso estão sendo estúpidas, não sabem sobre si mesmas e querem ensinar os índios a se organizar, a produzir, a sobreviver. Tudo isso é preconceito, é racismo.

Sobre os comentários de que a lama não é tóxica, como o senhor reage a eles?

Eu ouvi um geólogo falar isso… Eu acho que se ele pensa mesmo isso, ele deveria dar um mergulho no Rio Doce. Ele poderia levar a família dele lá, dar um mergulho e eventualmente levar um galão de água para casa e beber. Seria como alguém dizer que o Tietê não é tóxico, que o Tietê está bom. É muita cara de pau alguém afirmar isso. Se não estivesse nada tóxico no Rio, por que a vida dele toda estaria morta? Por que os peixes morreram? Por que até as algas morreram? Por que não tem nada? Nem bactéria? Ele virou um plasma de lama, e que lama é essa? Se as pessoas acham que não é tóxica, então que bebam ela.

O senhor acha que dá para explorar o minério de ferro de uma forma menos danosa? Como explorá-lo de uma forma mais responsável?

O Estado brasileiro precisa se estruturar com meios e recursos necessários a fiscalização e regulamentação destas atividades de alto risco para a sociedade e o meio ambiente. Seria uma condição para possíveis explorações minerárias atuarem dentro da lei.

Como o senhor expressa o seu sentimento em relação a esta tragédia?

O meu sentimento é o mesmo do de ver um avô em coma. A gente fica na expectativa de que ele volte a respirar.

Significado de passado, presente e futuro para o senhor?

Passado: As pessoas escolheram a margem desse rio, porque representava comida, remédio, beleza e vida.

Presente: o Rio significa suspensão da vida destas pessoas.

E o futuro? É uma incógnita. As pessoas não sabem o que vai ser do Rio Doce. Ele está temporariamente em coma.


FONTE: http://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/um-grito-na-paisagem/