Autor de 'Ideias para adiar o fim do mundo', Ailton Krenak debateu-as em BH, durante o Encontro Internacional Arte, Cultura e Democracia no Século 21
(foto: Neto Gonçalves/Divulgação)
Em 1987, no contexto das discussões da Assembleia Constituinte, o líder indígena, ambientalista e escritor Ailton Krenak fez um gesto que entrou para a história. Em sinal de luto pelo retrocesso na tramitação dos direitos indígenas, ele pintou o rosto de preto com pasta de jenipapo enquanto discursava no plenário do Congresso Nacional, em Brasília. “Se for para repetir esse gesto, tomara que seja com mais gente. Um homem sozinho não consegue nada. Mas não adianta ficar estressado, angustiado. Mesmo diante desse caos, precisamos não perder a fé e a calma. É preciso resolver as coisas com sabedoria”, afirma Krenak, que esteve em Belo Horizonte na quinta-feira passada (22), como convidado do Encontro Internacional Arte, Cultura e Democracia no Século 21, promovido pela Prefeitura.
Apesar do tom sereno, Krenak não esconde a preocupação, sobretudo com relação às mais recentes tragédias ambientais, como as queimadas em curso na Amazônia. “A Amazônia é um bioma complexo e regulador do clima e distribui chuvas, além de reciclar e limpar o oxigênio do planeta. Os governos europeus sabem dessa importância e por isso estão se manifestando, preocupados com a situação”, observa Krenak. Para os povos indígenas, no entanto, a relação é outra. “É como se fosse uma entidade à qual muitos povos se sentem vinculados e na obrigação de protegê-la.”
Embora valorize a preocupação dos governantes europeus, o líder indígena avalia que eles deveriam ter tomado decisões em relação à proteção da Amazônia há muito tempo, como a suspensão das importações de carne de boi, de frango, soja e minério. “A pecuária, a mineração, tudo isso está devastando nossas paisagens, nosso meio ambiente. França, Alemanha e outros países deveriam colocar alguma restrição na hora de importar esses produtos. Já que nosso presidente decidiu avacalhar tudo, ele mesmo poderia fazer algo nesse sentido. Proibir a venda dessas mercadorias, por exemplo”, sugere.
Krenak é pessimista com as perspectivas do governo de Jair Bolsonaro. Particularmente, ele se refere ao presidente como Nero, o imperador romano famoso por ter incendiado Roma. “Vivemos um período crítico, com ameaças aos direitos humanos, à ideia do Estado de direito. Enquanto existir esse governo agredindo o senso comum, desrespeitando tudo e todos, desmantelando a infraestrutura de governança que recebeu, a gente não tem esperança nenhuma de melhorar. Mas temos que seguir firmes, fortes e resistentes”, afirma.
Krenak celebra o fato de autores indígenas estarem conquistando espaço no mercado editorial. “É muito importante (os editores) se interessarem e valorizarem não só o que os indígenas têm feito, mas os quilombolas também. Temos que ampliar essas vozes”, diz.
Atualmente morando em Resplendor (MG), às margens do Rio Doce, região de origem dos Krenak, ele lamenta as condições a que seu povo está submetido, principalmente após o rompimento da barragem da Samarco, em 2015. “Ainda estamos sentindo os efeitos. Estamos refugiados dentro de casa, como se fosse um acampamento dentro do nosso próprio território. Temos caminhão-pipa trazendo água, os animais sendo alimentados com ração. Infelizmente, o Rio Doce ainda vai demorar muito para voltar a ser uma fonte de subsistência. Ouso dizer que ele está pior do que o Arrudas.”
Enquanto isso, o líder indígena segue a filosofia de sua etnia, com a “cabeça na terra”, que é o significado da palavra Krenak. “Cada cultura tem a sua maneira de orar. No nosso caso, a gente se ajoelha e coloca a cabeça na terra para se ligar a ela, fazendo contato com esse planeta tão maravilhoso. É assim que temos que continuar.”
FONTE: https://www.em.com.br/app/noticia/cultura/2019/08/25/interna_cultura,1079473/fe-calma-e-sabedoria-contra-o-caos-o-que-recomenda-lider-indigena.shtml
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
A situação na Amazónia acompanhada por associações ambientalistas de todo o mundo
Cientistas da NASA que monitorizam focos de incêndio no planeta confirmaram as indicações do Instituto Nacional de Pesquisa Espaciais brasileiro.
A agencia espacial norte-americana diz que estes fogos estão relacionados com a desflorestação.
Entrevistado pela rádio pública, um dos fundadores do movimento indígena no Brasil associa o presidente Bolsonaro às queimadas que afetam a região.
O activista Ailton Krenak, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, diz que foi o chefe de Estado quem induziu o chamado Dia do Fogo - uma iniciativa, alegadamente organizada por criadores de gados, cinco dias antes do início dos incêndios, na Amazónia.
FONTE: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/a-situacao-na-amazonia-acompanhada-por-associacoes-ambientalistas-de-todo-o-mundo_a1168235
A agencia espacial norte-americana diz que estes fogos estão relacionados com a desflorestação.
Entrevistado pela rádio pública, um dos fundadores do movimento indígena no Brasil associa o presidente Bolsonaro às queimadas que afetam a região.
O activista Ailton Krenak, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, diz que foi o chefe de Estado quem induziu o chamado Dia do Fogo - uma iniciativa, alegadamente organizada por criadores de gados, cinco dias antes do início dos incêndios, na Amazónia.
FONTE: https://www.rtp.pt/noticias/mundo/a-situacao-na-amazonia-acompanhada-por-associacoes-ambientalistas-de-todo-o-mundo_a1168235
O encontro de Ailton Krenak com a Bienal Internacional do Livro do Ceará
Por Roberta Souza, roberta.souza@diariodonordeste.com.br 23:28 / 20 de Agosto de 2019
Em sua primeira passagem pelo evento literário do Estado, o escritor e líder indígena reflete sobre o potencial da arte como edificante de uma nação e aproveita para estreitar laços com parentes locais
Enquanto desenhava uma dedicatória para o amigo Daniel Munduruku na primeira página da obra "Ideias para adiar o fim do mundo", Ailton Krenak lembrou-se de uma provocação: "você nunca vai ser um escritor famoso riscando o livro dos outros desse jeito". A frase havia sido dita pelo mesmo colega, ao pé do ouvido, num dos primeiros encontros dos dois em eventos literários do País. Nunca foi esquecida e tampouco lembrada. É tanto que para o mesmo interlocutor, o líder indígena de Minas Gerais estava a dedicar, em meio a um intervalo da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, traços e mais traços de uma literatura que vai muito além das palavras escritas.
"A possibilidade de uma literatura indígena é uma descoberta recente do público e, para um eventual leitor, ela é uma novidade. Eu até escrevi uma vez um pequeno texto refletindo sobre isso, retomando a ideia das inscrições rupestres, das cavernas, dos paredões, abrigos da antiguidade onde nossos ancestrais deixavam marcas, e relacionando isso com a ideia de que as narrativas da oralidade são de alguma maneira essa literatura", arremata Krenak, instantes após a dedicatória.
Convidado a falar sobre as narrativas de seu povo e a memória dos antigos no espaço "Oralidade, Ancestralidades e Mestres da Cultura" da Bienal do Ceará, o escritor e ambientalista comemorou o protagonismo conferido a ele, Munduruku (PA) e Cristino Wapichana (SP), por exemplo. "Promover esse lugar que tem sido chamado de 'lugar de fala' para cada interlocução, seja ela no campo da questão de gênero, de raça, de cultura, e no caso do povo indígena, assegurando nossa voz, eu acho que é fazer a coisa certa", pontua.
Durante muito tempo, na história do nosso País, não foi dada atenção para isso. O que existe de bom na literatura a favor dos índios e feito por não-indígenas é muito bacana, muito bem-vindo, mas está na hora dessa literatura ser literatura indígena, feita pelos indígenas, narrada pelos indígenas. Que esse encontro se dê entre pessoas, sem mediação", defende.
ARTE POLÍTICA
A trajetória de Ailton, pertencente à etnia crenaque e nascido na região do médio Rio Doce, é atravessada pela atuação política frente às causas de seu povo. Um dos exemplos disso foi sua participação na Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Carta Magna Brasileira de 1988. Já naquela época, ele protestava por dignidade. E um capítulo inédito sobre a proteção dos direitos dos indígenas na Constituição foi garantido graças à essa luta. Ao lançar olhar crítico sobre o Brasil de hoje, Krenak revisita um passado não tão distante.
"Mesmo que a gente esteja fazendo poesia e celebrando nossa arte, nossa cultura, a gente não pode se distrair, porque o autoritarismo se dissimula, aparece de várias formas. É por isso, inclusive, que essa ideia dessa democracia representativa, essa democracia formal, precisa ser posta em questão. Porque se a gente aceita que nós estamos vivendo uma democracia só porque somos convocados às urnas para escolher um presidente, isso pode ser uma grande trapaça", declara o ativista.
Povo Jenipapo-Kanindé acolheu Ailton Krenak na comunidade em Aquiraz por ocasião da atividade "Bienal fora da Bienal"
FOTO: BETO SKEFF
O escritor avalia que vivemos atualmente num cenário "que está sendo sucateado por uma mentalidade racista, preconceituosa em todos os sentidos" e isso o preocupa muito. "Fico pensando como o Brasil pode se fortalecer, chacoalhar e tirar essa praga que está nos nossos ambientes", reflete. A resposta, ele mesmo dá.
"É aí que está a importância dessa Bienal. Ela convoca autores, pensadores, filósofos, artistas, ela convoca o cidadão, na verdade. É claro que se alguém se constituiu num narrador, num escritor, num contador de histórias, ergueu-se nessa posição a partir de uma identidade e num sentido de cidadania", introduz o pensamento.
Todas as pessoas que estão aqui querem que o Brasil dê certo. Esse campo da arte é um campo que quer edificar uma nação e eu acho que isso é um desejo das pessoas que vivem o dia a dia, das pessoas que mandam as crianças para a escola para estudar, dos pais, das famílias que lidam para que essa vida seja um lugar bom pra todo mundo, e esse ambiente cria essa atmosfera", acredita.
ENCONTROS
A passagem de Krenak pela Bienal não se restringiu aos pavilhões do Centro de Eventos do Ceará. No último domingo (18), ele também esteve em visita à comunidade Jenipapo-Kanindé, no município de Aquiraz. O encontro com seus "parentes", como faz questão de ressaltar, foi puro acolhimento.
"Gostei muito de conhecer o território deles, e também de sentir a determinação da Cacique Pequena, de ter puxado a história do povo dela do anonimato e da negação de existência", diz.
Ailton Krenak e a Cacique Pequena estiveram juntos na comunidade Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz
FOTO: BETO SKEFF
Dos irmãos daqui, Krenak carrega somente certezas.
Os Jenipapo-Kanindé passaram quase todo o século XX ressurgindo com uma disposição de permanecer no mundo enquanto tiver gente. Eu acho isso lindo. Eles trazem para esse concerto com os povos uma poética, uma cantoria, um toré e, obviamente, eles invocam os encantados. Tem uma constelação de seres que estão guiando eles e sustentando a passagem deles pela Terra. Isso é maravilhoso, aumenta a potência do pensamento indígena num mundo que está em disputa o tempo inteiro".
Na despedida, o escritor indígena leva o afeto e a acolhida das pessoas como o ganho mais permanente, "aquele presente que vai ficar em mim". E aposta nas programações da "Bienal fora da Bienal" e do espaço "Terreiro em Sonho", por onde passou, como potencializadoras de um evento que há muito deixou de ser uma "feira". "O livro está só como um pretexto pra todo esse encontro que acontece aqui no Ceará. Todo mundo tem o que dizer", finaliza.
Serviço
XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará
Até 25 de agosto, das 10h às 22h, no Centro de Eventos do Ceará (Av. Washington Soares, 999 - Edson Queiroz). Gratuito. Programação em bienaldolivro.Cultura.Ce.Gov.Br/Programacao/
FONTE: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/o-encontro-de-ailton-krenak-com-a-bienal-internacional-do-livro-do-ceara-1.2138197
Em sua primeira passagem pelo evento literário do Estado, o escritor e líder indígena reflete sobre o potencial da arte como edificante de uma nação e aproveita para estreitar laços com parentes locais
Enquanto desenhava uma dedicatória para o amigo Daniel Munduruku na primeira página da obra "Ideias para adiar o fim do mundo", Ailton Krenak lembrou-se de uma provocação: "você nunca vai ser um escritor famoso riscando o livro dos outros desse jeito". A frase havia sido dita pelo mesmo colega, ao pé do ouvido, num dos primeiros encontros dos dois em eventos literários do País. Nunca foi esquecida e tampouco lembrada. É tanto que para o mesmo interlocutor, o líder indígena de Minas Gerais estava a dedicar, em meio a um intervalo da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará, traços e mais traços de uma literatura que vai muito além das palavras escritas.
"A possibilidade de uma literatura indígena é uma descoberta recente do público e, para um eventual leitor, ela é uma novidade. Eu até escrevi uma vez um pequeno texto refletindo sobre isso, retomando a ideia das inscrições rupestres, das cavernas, dos paredões, abrigos da antiguidade onde nossos ancestrais deixavam marcas, e relacionando isso com a ideia de que as narrativas da oralidade são de alguma maneira essa literatura", arremata Krenak, instantes após a dedicatória.
Convidado a falar sobre as narrativas de seu povo e a memória dos antigos no espaço "Oralidade, Ancestralidades e Mestres da Cultura" da Bienal do Ceará, o escritor e ambientalista comemorou o protagonismo conferido a ele, Munduruku (PA) e Cristino Wapichana (SP), por exemplo. "Promover esse lugar que tem sido chamado de 'lugar de fala' para cada interlocução, seja ela no campo da questão de gênero, de raça, de cultura, e no caso do povo indígena, assegurando nossa voz, eu acho que é fazer a coisa certa", pontua.
Durante muito tempo, na história do nosso País, não foi dada atenção para isso. O que existe de bom na literatura a favor dos índios e feito por não-indígenas é muito bacana, muito bem-vindo, mas está na hora dessa literatura ser literatura indígena, feita pelos indígenas, narrada pelos indígenas. Que esse encontro se dê entre pessoas, sem mediação", defende.
ARTE POLÍTICA
A trajetória de Ailton, pertencente à etnia crenaque e nascido na região do médio Rio Doce, é atravessada pela atuação política frente às causas de seu povo. Um dos exemplos disso foi sua participação na Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Carta Magna Brasileira de 1988. Já naquela época, ele protestava por dignidade. E um capítulo inédito sobre a proteção dos direitos dos indígenas na Constituição foi garantido graças à essa luta. Ao lançar olhar crítico sobre o Brasil de hoje, Krenak revisita um passado não tão distante.
"Mesmo que a gente esteja fazendo poesia e celebrando nossa arte, nossa cultura, a gente não pode se distrair, porque o autoritarismo se dissimula, aparece de várias formas. É por isso, inclusive, que essa ideia dessa democracia representativa, essa democracia formal, precisa ser posta em questão. Porque se a gente aceita que nós estamos vivendo uma democracia só porque somos convocados às urnas para escolher um presidente, isso pode ser uma grande trapaça", declara o ativista.
Povo Jenipapo-Kanindé acolheu Ailton Krenak na comunidade em Aquiraz por ocasião da atividade "Bienal fora da Bienal"
FOTO: BETO SKEFF
O escritor avalia que vivemos atualmente num cenário "que está sendo sucateado por uma mentalidade racista, preconceituosa em todos os sentidos" e isso o preocupa muito. "Fico pensando como o Brasil pode se fortalecer, chacoalhar e tirar essa praga que está nos nossos ambientes", reflete. A resposta, ele mesmo dá.
"É aí que está a importância dessa Bienal. Ela convoca autores, pensadores, filósofos, artistas, ela convoca o cidadão, na verdade. É claro que se alguém se constituiu num narrador, num escritor, num contador de histórias, ergueu-se nessa posição a partir de uma identidade e num sentido de cidadania", introduz o pensamento.
Todas as pessoas que estão aqui querem que o Brasil dê certo. Esse campo da arte é um campo que quer edificar uma nação e eu acho que isso é um desejo das pessoas que vivem o dia a dia, das pessoas que mandam as crianças para a escola para estudar, dos pais, das famílias que lidam para que essa vida seja um lugar bom pra todo mundo, e esse ambiente cria essa atmosfera", acredita.
ENCONTROS
A passagem de Krenak pela Bienal não se restringiu aos pavilhões do Centro de Eventos do Ceará. No último domingo (18), ele também esteve em visita à comunidade Jenipapo-Kanindé, no município de Aquiraz. O encontro com seus "parentes", como faz questão de ressaltar, foi puro acolhimento.
"Gostei muito de conhecer o território deles, e também de sentir a determinação da Cacique Pequena, de ter puxado a história do povo dela do anonimato e da negação de existência", diz.
Ailton Krenak e a Cacique Pequena estiveram juntos na comunidade Jenipapo-Kanindé, em Aquiraz
FOTO: BETO SKEFF
Dos irmãos daqui, Krenak carrega somente certezas.
Os Jenipapo-Kanindé passaram quase todo o século XX ressurgindo com uma disposição de permanecer no mundo enquanto tiver gente. Eu acho isso lindo. Eles trazem para esse concerto com os povos uma poética, uma cantoria, um toré e, obviamente, eles invocam os encantados. Tem uma constelação de seres que estão guiando eles e sustentando a passagem deles pela Terra. Isso é maravilhoso, aumenta a potência do pensamento indígena num mundo que está em disputa o tempo inteiro".
Na despedida, o escritor indígena leva o afeto e a acolhida das pessoas como o ganho mais permanente, "aquele presente que vai ficar em mim". E aposta nas programações da "Bienal fora da Bienal" e do espaço "Terreiro em Sonho", por onde passou, como potencializadoras de um evento que há muito deixou de ser uma "feira". "O livro está só como um pretexto pra todo esse encontro que acontece aqui no Ceará. Todo mundo tem o que dizer", finaliza.
Serviço
XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará
Até 25 de agosto, das 10h às 22h, no Centro de Eventos do Ceará (Av. Washington Soares, 999 - Edson Queiroz). Gratuito. Programação em bienaldolivro.Cultura.Ce.Gov.Br/Programacao/
FONTE: https://diariodonordeste.verdesmares.com.br/editorias/verso/o-encontro-de-ailton-krenak-com-a-bienal-internacional-do-livro-do-ceara-1.2138197
Líder indígena critica Bolsonaro por propostas sobre mineração
19/08/2019 16h41
María Angélica Troncoso.
Fortaleza (Ceará), 19 ago (EFE).- Um dos principais líderes indígenas do Brasil, Ailton Krenak criticou o presidente Jair Bolsonaro e o Governo Federal pela intenção de legalizar a atividade de mineração em terras ocupadas pelos povos indígenas.
Em entrevista à Agência Efe, Krenak apontou que os abusos que acontecem atualmente na Amazônia são provocados pelos discursos do presidente e dos ministros.
"Parece que enlouqueceram. É como se quisessem destruir a base natural do país", afirmou o ambientalista e escritor, que participa da XIII Bienal Internacional do Livro do Ceará.
A feira literária, que acontecerá até o próximo domingo, abre espaço para narrativas indígenas e de afrodescendentes e tem como tema central "As cidades e os livros". O evento acontece no Centro de Eventos do Ceará, em Fortaleza.
Além das críticas ao governo, Krenak opinou que a ideia de liberar a atuação de garimpeiros é apenas uma expressão de uma política global.
"Está acontecendo no mundo inteiro, é o que verbalizam as mentalidades mais descontroladas", disse.
No final de julho, Bolsonaro reforçou ter a intenção de regulamentar o garimpo no Brasil, incluindo em terras indígenas. Na ocasião, sem citar exemplos, o presidente alegou que alguns países e ONGs não querem que isso aconteça, porque querem os índios presos em "um zoológico", como um ser "pré-histórico".
Por sua vez, Krenak, que participou da elaboração da Constituinte, em 1988, considera que está contecendo "um assalto" às riquezas naturais brasileira.
Segundo dados coletados da Rede Amazônica de Informação Socioambiental (Raisg) e divulgados em dezembro de 2018, o Brasil conta com 321 pontos de mineração ilegal distribuídos em 132 áreas, a maioria concentrada nas margens do rio Tapajós.
O Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), por sua vez, apontou que houve um aumento em 278% do desmatamento entre julho de 2019 e o mesmo mês do ano passado.
Krenak, que foi criado na bacia do Rio Doce, em Minas Gerais, aproveitou o evento em Fortaleza para lembrar das tragédias em Brumadinho e Mariana, que tiveram saldo de 248 e 19 mortos, respectivamente, além de graves danos ambientais. Para o ativista, grandes corporações da mineração são culpadas por catástrofes como essas por "só visarem o lucro". EFE
FONTE: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2019/08/19/lider-indigena-critica-bolsonaro-por-propostas-sobre-mineracao.htm
segunda-feira, 12 de agosto de 2019
Povo indígena alerta UE sobre Amazônia: “Vocês estão financiando crime”
‘O solo onde essa produção de grãos se dá é uma terra necrosada’, diz líder indígena Ailton Krenak
O negócio bilionário cresceu aos olhos do governo assim que se concretizou diante do mundo. O acordo entre a União Europeia e o bloco que era tão criticado pelo presidente, o Mercosul, foi apresentado por Jair Bolsonaro como um dos “mais importantes de todos os tempos”, com “benefícios enormes” para a economia do País. O preço, porém, pode ser perverso. Líderes indígenas e entidades ambientalistas denunciam, ao outro bloco econômico signatário, o rastro de destruição deixado pelo agronegócio em terras invadidas, o vício em veneno por parte produtores brasileiros e o desprezo pelos povos em suas terras. “O que o povo indígena e seus aliados estão fazendo é exatamente alertar a Europa: vocês estão financiando o crime.”
Ailton Krenak, autor da fala acima, é uma das figuras mais importantes do movimento indígena no Brasil. Escritor e professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, ficou ainda mais conhecido há 30 anos, quando pintou o rosto em uma fala história na Assembleia Constituinte de 1988.
“Um povo que habita casas cobertas de palha, que dorme em esteiras no chão, não deve ser identificado de jeito nenhum como o povo que é inimigo do Brasil, inimigo dos interesses da nação e que coloca em risco qualquer desenvolvimento”, disse Krenak à época. A Constituição incluiu os direitos dos índios em seu texto, mas a financeirização global parece ter outras prioridades – e o movimento sabe disso.
Em junho, antes do acordo UE-Mercosul, a coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e ex-candidata à vice-presidência pelo PSOL Sônia Guajajara, anunciou em coletiva de imprensa na Alemanha que as lideranças dos povos brasileiros irão visitar empresas de cinco países e tentar participar de reuniões no Parlamento Europeu para denunciar o que eles estão prestes a comprar às toneladas: índices históricos de desmatamento e de aprovação de agrotóxicos, além de cerceamento de instituições reguladoras, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) e da própria Funai (Fundação Nacional do Índio).
Guajajara estava na cidade de Bonn participando da primeira semana de negociações da COP25, a Conferência de Mudanças Climáticas da ONU – que deveria ser no Brasil este ano se não fosse pela atuação bem sucedida de Bolsonaro em descreditar a importância da reunião e tirar o país da lista de concorrentes.
A pressão dos indígenas brasileiros não é solitária. Na Europa, ambientalistas classificaram o acordo como “inaceitável”. Políticos franceses assinaram uma carta na qual chamam o acordo de “um erro econômico e um horror ecológico”, e os líderes Emmanuel Macron, da França, e Angela Merkel, da Alemanha, também mostraram-se preocupados com os impactos ambientais de tal comércio expansivo, mas não é a primeira vez que eles são avisados.
“Começamos a alertar a Europa que eles estavam comprando madeira roubada das terras indígenas e unidades de conservação na Amazônia há 20 anos”, relatou Ailton Krenak. “Essa campanha obrigou um maior controle de certificação sobre a madeira que saia dos portos do Brasil, e, durante mais de uma década, se constituiu em um importante mecanismo de diminuir o desmatamento o o roubo de madeira nas terras indígenas”, analisou.
Em relatório inédito sobre como as relações entre empresas norte-americanas e europeias com negócios não sustentáveis se costuram nas florestas brasileiras, a Apib relatou dados importantes. Os autores do estudo analisaram as principais multas por desmatamento ilegal cometidas por 56 empresas brasileiras que foram autuadas pelo Ibama desde 2017, e identificaram as negociantes com tais partes, o que comprova que o amplo mercado da carne no Brasil, por exemplo, só é possível por conta da destruição de territórios do Cerrado e da Amazônia.
Cerca de 41% das importações de carne bovina da UE foram provenientes do Brasil em 2018, e os números poderiam refletir uma realidades diferente caso houvesse pressão econômica por parte dos importadores nos produtores nacionais. “Se não der prejuízo, não muda a tendência. Só vão parar de jogar veneno, comer floresta e comer terra se eles tiverem prejuízo”, critica Krenak.
No Brasil, o relatório da Apib destacou a importância de investidores e comerciantes de commodities globais, que analisam os riscos de negócios e influenciam aonde vai parar o capital no final das contas. O movimento indígena também luta por esta via: um dos advogados da Apib, Luiz Henrique Aloy, do povo Terena (MS), participou da reunião anual da Blackrock, a maior gestora de investimentos do mundo – que possui mais de 6 trilhões de dólares em ativos – e pediu para que os executivos boicotassem commodities provenientes de invasões ilegais. Neste ano, a Blackrock ja reduziu ações da mineradora Vale após a tragédia de Brumadinho, um movimento claramente em direção aos negócios. Resta saber se há alguma sensibilidade em Wall Street com pressão por parte do mercado europeu.
Uma parceria entre a ONG WWF e a Fundação Getúlio Vargas também analisou, em 2017, as responsabilidades do mercado financeiro na cadeia de desmatamento nos solos nacionais. Um dos investidores entrevistados apontou que “riscos reputacionais” poderiam comprometer a capacidade das empresas em atuar em certos países, e destacou também o exemplo da multinacional IOI Group, que perdeu cerca de 20% do valor de mercado após descobertas relacionadas à extração de óleo de palma e desmatamento.
“Terra necrosada”
Em janeiro, uma operação da Policia Federal apreendeu mais de 40 contêineres de madeira ilegal no porto de Manaus – cerca de 50% do total seria destinado à Europa e aos Estados Unidos. “O material apreendido até o momento, se colocado de forma linear, cobriria um percurso de 1.500 quilômetros, o que equivaleria à distância entre Brasília e Belém, aproximadamente”, informou a PF em comunicado. Desde março de 2019, houve um aumento de 150% nas invasões ilegais em todo o País, de acordo com a APIB. A principal vítima é a Amazônia – e não há fiscalização.
Para além dos números distorcidos apresentados pelo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, e pela ‘musa do veneno’ e chefe da pasta da Agricultura, Tereza Cristina, Ailton Krenak define a linha de aviso a quem se interesse em fazer negócios no Brasil. “O solo onde essa produção de grãos se dá é uma terra necrosada. E os europeus estão comendo essa necrose. Se eles quiserem continuar financiando o agronegócio, eles podem comprar o próprio veneno deles.”
FONTE: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/povo-indigena-alerta-ue-sobre-amazonia-voces-estao-financiando-crime/
26ª edição do Porto Alegre em Cena discute as artes e a humanidade
Continuando com a proposta da edição passada, o 26º Porto Alegre em Cena, que ocupará a cidade de 10 a 23 de setembro, esse ano propõe discussão sobre o Brasil, quem somos e o futuro da humanidade.
Com mais temáticas e aprofundando relações entre a natureza e o humano, o viés será mais ligado ao âmbito filosófico e antropológico. “A presença do corpo em cena, não apenas humano, mas os corpos da natureza, descentralizar a figura humana das grandes realizações e mesclar suas diferenças, valorizando-as são algumas das propostas de discussão do festival esse ano. Queremos causar reflexões sobre a humanidade e nossas potências e fragilidades”, explica Fernando Zugno, diretor geral do Em Cena.
Cerca de 53 atividades fazem parte da 26ª edição do festival. Artistas indígenas de Minas Gerais e da Amazônia, além de representantes regionais, estarão presentes. Ailton Krenak (krenak), Davi Kopenawa (yanomami) e um xamã (yanomami) serão figuras centrais nas discussões e estarão em Porto Alegre durante todo período do festival para uma das residências artísticas dessa edição.
“Krenak auxiliou a formatar a Constituição de 1988. Kopenawa escreveu uma obra-prima intitulada A queda do céu em parceria com o francês Bruce Albert, que só ganhou versão em português cinco anos depois de seu lançamento na Europa. Eles estarão juntos, durante dez dias, no festival, e serão centrais em uma das residências artísticas que planejamos”, ressalta Zugno.
Já Sergio Blanco é diretor e dramaturgo, dos mais importantes da atualidade, e desponta no âmbito cênico com duas peças que levam sua assinatura: Las Flores Del Mal (em que Blanco versará sobre violência de uma forma geral e, especificamente, na arte) e A Ira de Narciso.
Nessa edição serão cinco lançamentos de obras literárias, no Centro Municipal de Cultura, além de atividades complementares sobre as obras: o livro de dramaturgia francesa ganhará leitura dramática dirigido por Renato Forin Jr e interpretado pela Cia. Indeterminada.
A programação está repleta de diversidade. Desde temáticas mais densas e reflexivas até montagens mais populares. Entre os destaques estão Dakh Daughters, um grupo de mulheres ucranianas que mistura músicas, textos e interpretações que versam sobre amor e guerra; Gota D’água {Preta} é uma releitura do clássico criado por Chico Buarque e Paulo Pontes na década de 1970, encenado por um elenco predominantemente negro, em que estilos da periferia, funk e hip hop são embalados pela forca e a influencia das religioes de matriz africana.
Já PI Panorâmica Insana conta com mais de 150 personagens interpretados por Cláudia Abreu, Leandra Leal e grande elenco. A peça, dirigida por Bia Lessa, discute temas como civilização, indivíduo, sexualidade, política, violência, miséria, riqueza e desejo.
Da França vem Happi - A tristeza do rei, espetáculo de dança contemporânea que é fruto da colaboração de dois notáveis artistas de origem africana radicados na França: James Carlès, intérprete, de origem camaronesa, e Heddy Maalen, coreógrafo, nascido na Algéria.
Entre os espetáculos nacionais, não poderia faltar o tradicional Grupo Galpão. Com direção de Márcio Gomes, o espetáculo Outros é um desdobramento de Nós, apresentado em Porto Alegre em 2016. Destaca inquietações contemporâneas e questões relacionadas à incapacidade ou necessidade de escuta do silêncio, bem como a construção da memória e o impacto do agora no futuro.
De São Paulo vem Margarida. A peça é uma tentativa poética de dar vida à memória de Margarida Maria Alves, militante camponesa assassinada em 1983 por interesses políticos de latifundiários. Após perceber-se herdeira de uma tradição, a performer paraibana Luz Bárbara reconstrói a trajetória de Margarida em uma experiência compartilhada com o público de retorno à casa e ao túmulo da militante.
Os ingressos custam entre R$ 10,00 e R$ 80,00 – mais detalhes serão divulgados em breve. A pré-venda começa dia 20 de agosto, com abertura para o público em geral dia 30 de agosto. A bilheteria física estará no Shopping Total, enquanto a venda online ocorre pelo site uhuu.com. Mais informações pelo site portoalegreemcena.com.
FONTE: https://www.jornaldocomercio.com/_conteudo/cultura/2019/08/697393-26-edicao-do-porto-alegre-em-cena-discute-as-artes-e-a-humanidade.html
Vida e luta do escritor e líder indígena Ailton Krenak são temas de documentário
O líder indígena Ailton Krenak, autor do livro “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo” (Cia das Letras) — o terceiro mais vendido na última FLIP — protagoniza o documentário Ailton Krenak: O Sonho da Pedra, de Marco Altberg.
O longa, exibido pelo canal Curta!, acompanha a trajetória de vida e expõe as reflexões sobre a luta do escritor e filósofo pertencente à etnia krenak. Com imagens e depoimentos de Ailton em diferentes momentos, bem como de Vincent Carelli, Álvaro Tukano, Darcy Ribeiro, Juca Ferreira, Mário Juruna e Marcos Terena, o filme mostra o percurso de Krenak, desde os seus estudos em São Paulo até as suas viagens pelo Brasil e pelo mundo, consolidando-o como uma espécie de embaixador das culturas originárias brasileiras.
Uma de suas ações mais famosas se deu na Assembléia Constituinte, em 1987, quando discursou no Congresso Nacional ao mesmo tempo em que pintava seu rosto de preto, em protesto contra o tratamento dado aos índios brasileiros pelos políticos. “Ailton Krenak: O Sonho da Pedra” será exibido na Sexta da Sociedade, 9, às 23h.
Imagem: Aílton Krenak e o sonho da pedra / Divulgação
FONTE: https://filmow.com/noticias/31983/vida-e-luta-do-escritor-e-lider-indigena-ailton-krenak-sao-temas-de-documentario/
O xamanismo como inspiração para novas formas de pensar o jornalismo
Por Pedro Varoni em 06/08/2019 na edição 1049
Observatório da imprensa
Lara Linhalis Guimarães é professora de Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto. É integrante do grupo de pesquisa Quintais: Cultura da Mídia, Arte e Política e do Laboratório de Jornalismo e Narrativas Audiovisuais, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao jornalista Pedro Varoni, Lara fala sobre suas pesquisas, que propõem o diálogo entre as práticas xamânicas de matriz indígena e o exercício do jornalismo.
Essas inquietações foram despertadas durante o doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando se dedicou a pesquisar o midiativismo das manifestações de 2013. As chamadas “jornadas de junho” foram o epicentro de mudanças políticas que impactaram o jornalismo. A grande mídia cobriu as manifestações de longe, apartada do acontecimento. De outro lado, assistimos à imersão total na ação daqueles que fizeram as transmissões ao vivo, de dentro das manifestações em 2013. Essa dicotomia fez a pesquisadora pensar num deslocamento: nem tão de dentro, nem tão de fora.
A resposta para esse impasse veio num curso de aperfeiçoamento em cultura e histórias do povo indígena na Universidade Federal de Juiz de Fora. Lara era tutora do curso e conheceu Ailton Krenak, liderança indígena e escritor. Através dele, aproximou-se do perspectivismo ameríndio, teoria do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. A partir daí, passou a refletir sobre uma analogia entre os deslocamentos perspectivísticos próprios do xamanismo e a tradução de mundo almejada pelos jornalistas.
Mas não espere dessas reflexões manuais para um novo jornalismo. Trata-se, antes, do convite a pensar novos modos de mediação – o repórter xamã é um personagem conceitual, no sentido atribuído pelos filósofos Deleuze e Guattari. Afinal, como escreve Lara em um dos seus textos, “o nascimento de uma nova ontologia é questão de sobrevivência: do mundo e do jornalismo”.
O contexto contemporâneo tem imposto desafios epistemológicos ao jornalismo. Ainda é possível defender as ideias de imparcialidade e objetividade atualmente?
Primeiro, precisamos pensar como aquilo que se convencionou chamar de “o” jornalismo – o hegemônico, aquele legitimado na prática profissional, ao menos como modelo a ser seguido – abriga dessas ideias e se esse jornalismo dá conta da multiplicidade de mundos que se proliferam e são postos em tensão no contexto contemporâneo. Esse jornalismo – o legitimado – é filho da modernidade, logo, de uma visão cientificista de mundo: aquela que separa natureza de cultura, fato de versão, realidade objetiva de representação. Por essa via, caberia ao jornalista a tarefa árdua de buscar sempre ver os acontecimentos de uma perspectiva distanciada, ou atuar “do lado de fora” dos fatos, exercendo uma postura imparcial a respeito, ao menos como meta. Esse ideal de conhecimento está baseado na crença de que conhecer é objetivar, ou seja, despir os fatos de suas subjetividades, a fim de conhecê-los melhor. A questão que se coloca é: o que esse jornalismo, com base nesse ideal, tem produzido em termos de conhecimento sobre o(s) mundo(s) contemporâneo(s)? Vejo pouca coisa potente e assumo o risco da generalização quando digo isso. Assim como vejo pouco promissor o que convencionou-se chamar de jornalismo ativista: aquele que prega a inserção radical na ação, ou a valoração por si só positiva das subjetividades, uma vez que a presunção de verdade prevalece (agora “do lado de dentro” dos acontecimentos). Penso ser urgente ativar o pronome indefinido quando tratamos de jornalismo – um jornalismo -, pois assim, ao menos potencialmente, abrimos espaço para pensar – e encontrar – outros jornalismos possíveis, que se sustentem a partir de outros ideais de conhecimento, outras formas de tradução ou maneiras de contar histórias. Uma pista seria buscar, em suma, outras ontologias – outros modos de ser e estar no mundo – para inventar um jornalismo (não “o” jornalismo) que abrigue a diferença, ao invés de silenciá-la, que faça dialogar perspectivas, atuando, de fato, os ou as jornalistas como mediadores de mundos. Se o jornalismo, aquele do artigo definido masculino, não fizer isso (se ele não se mover pelo terreno da inconstância do ser, virando “um”, “uma”, nem que seja pra voltar a ser “o”), penso, em tom melancólico mesmo, que haverá um momento em que os discursos, no geral, serão produzidos apenas para o espelho – para os mesmos, para quem pensa igual, vive igual. E aí vem o risco de proliferação de narrativas totalitárias, e, como já temos visto, da ascensão da intolerância em diversos níveis, e essas narrativas terão mais impacto na vida das pessoas do que nossas histórias contadas a partir de técnicas de verificação precisas. Há que se buscar outras maneiras de conversar e suspeito que, para isso, o filho da modernidade tenha que sair da casa onde nasceu.
As manifestações de 2013 trouxeram à tona a necessidade do jornalismo brasileiro ser mais plural, a partir da ideia da multiparcialidade defendida por coletivos como o Mídia Ninja. O que se viu na sequência foi um modelo de jornalismo ativista, convivendo com a mídia conservadora mainstream. Há um terceiro caminho para além dessa dualidade que tem marcado a vida social e a imprensa brasileira?
O que eu verifiquei a partir da minha pesquisa de campo junto a coletivos de midiativismo no Rio de Janeiro – especialmente junto ao grupo que se autodenominou como Mídia Ninja, vinculado ao coletivo Fora do Eixo -, é que a ideia de inserção radical na ação, à primeira vista muito potente quando a gente pensa no modo como a mídia tradicional vinha cobrindo as manifestações (do alto dos edifícios, dos helicópteros ou numa performance falseada de um ou outro repórter no meio dos manifestantes), trazia consigo a mesma presunção de acesso privilegiado ao mundo, ao acontecimento, que as narrativas produzidas pela mídia tradicional. A questão é que essa presunção não evoluiu para uma conversa entre diferentes perspectivas. O que se viu foi a proliferação de contra-narrativas, valoradas positivamente por afirmar algo “contra” um discurso hegemônico. De fato, a existência e a visibilidade dessas contra-narrativas já eram por si sós um ato de resistência, naquele momento. Lembro-me bem de vários entrevistados que relataram que decidiram transmitir ao vivo os protestos porque o que eles viam na televisão ou liam nos jornais não correspondiam ao que eles vivenciavam enquanto manifestantes. Entretanto, narrativas e contra-narrativas se encaixam bem em esquemas maniqueístas, para o bem e para o mal. Naquele momento da minha pesquisa, comecei a flertar com correntes contemporâneas da antropologia, que buscavam trilhar o seguinte caminho no que diz respeito ao conhecimento sobre a humanidade: para entender sobre nós – inclusive sobre a própria ideia de humanidade, que é também uma construção – precisamos ir até nossos outros! E quem são nossos outros? Aqueles que sustentam suas vidas a partir de outros modos de ser e estar no mundo, de outras ontologias. Naquele momento, também comecei a acessar indígenas que se propunham a dar visibilidade aos seus modos de pensar o mundo, como Davi Kopenawa, Kaká Werá, Álvaro Tukano e especialmente Ailton Krenak, importante liderança indígena, jornalista e profundo conhecedor da cosmologia ameríndia. Por esse caminho, iniciei a tessitura do que, à primeira vista, me pareceu um potente devaneio: criar uma analogia entre o tornar-se outro, próprio dos xamãs em seus deslocamentos perspectívicos, e o movimento de tradução de mundos almejado pelos jornalistas. Os xamãs, ou pajés, a grosso modo, são aqueles que conseguem fazer dialogar espécies diferentes de seres – plantas, animais, espíritos, aquilo que a gente chama de fenômenos da natureza ou ainda o que a gente entende como seres inanimados, como montanhas, pedras, objetos, etc. Para que esse tipo de tradução seja possível, a alteridade – a diferença – torna-se constitutiva do eu, num movimento em que tanto o xamã quanto a espécie com a qual se quer dialogar entram em um processo de transformação mútua. Cada um passa a “funcionar” como o outro, a partir de um ideal de conhecimento em que, como acredita o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, conhecer é subjetivar, personificar, auferir o máximo de intencionalidades daquele – ou daquilo – que se propõe a conhecer. Esse devir-outro, ou “ver como”, distancia-se do dualismo lado de fora/lado de dentro, o qual observei no âmbito das manifestações de junho de 2013 e no eco ruidoso desses protestos ao longo da Copa de Mundo de 2014. Seria um movimento de tradução que é, ao mesmo tempo, lado de dentro e lado de fora. E, a partir daí, comecei a buscar inspiração no xamanismo para pensar a tradução de mundos realizada pelos jornalistas. O momento agora é de traição da analogia inicial a qual me propus, para pensar novas combinações com vistas a potencializar o “ver como” dos jornalistas.
O seu trabalho propõe como modelo um diálogo do jornalismo com a teoria do perspectivismo ameríndio do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. É possível resumir essa proposta?
É importante dizer, de antemão, que a pretensão de esboçar um novo modelo de jornalismo a partir do xamanismo é menos importante, a meu ver, do que pensar o jornalismo a partir do xamanismo. Ou, mais precisamente, pensar um jornalismo a partir da ideia de xamanismo que construí, muito especialmente, a partir de Davi Kopenawa e Viveiros de Castro. É este antropólogo, por exemplo, que vai entender os xamãs como os mestres do esquematismo cósmico. A partir do estudo desses povos é que Viveiros de Castro fez surgir o conceito de perspectivismo ameríndio. O conceito abriga a crença, partilhada por povos indígenas amazônicos, de que o mundo é habitado por diferentes tipos de seres (humanos e não-humanos) que são sujeitos, ou seja, têm capacidade de agência sobre o mundo, são pessoas (mesmo que pessoas não-humanas), agem com base em intencionalidade e reflexividade. Nesse conceito está também a ideia de que cada um desses seres se vê como humano, vendo todos os outros, então, como não-humanos. Isso porque, em algumas cosmologias não ocidentais, prevalece a ideia de que há uma humanidade moral comum a todos os seres (uma só alma, uma só cultura), os quais se diferenciam então pelo corpo (pela “natureza”). Ser humano, assim, seria uma posição ocupada somente em relação a um outro, o que nos faz mirar a ideia de humanidade como capacidade, não como condição essencial. E põe no horizonte, ainda, a multiplicidade potencial de condições de existência. Pois bem. O deslocamento xamânico ameríndio almejaria, então, a interlocução transespecífica, aquela entre diferentes espécies de seres, vendo os não-humanos como eles se veem, ou seja, como humanos. O xamã seria aquele autorizado a cruzar essas perspectivas múltiplas (os diferentes corpos, as diferentes naturezas), desenvolvendo sua diplomacia, a sua arte política, entre variadas espécies de seres que habitam a zona de uma humanidade moral (uma só cultura). A tradução levada a cabo pelos xamãs almejaria o quem das coisas, para então chegar ao por que (ou aos porquês). Isso em razão de o xamanismo cultivar um ideal epistemológico, como já mencionei anteriormente, em que conhecer é personificar. Uma boa interpretação xamânica, assim, é aquela que, segundo Viveiros de Castro, consegue revelar um máximo de intencionalidades em cada evento. Pois bem, interessa então navegar (e uso esse verbo intencionalmente, porque minha ação é justamente essa) pelo movimento de tornar-se outro próprio do xamanismo, a fim de inspirar o que chamei inicialmente de jornalismo de perspectivas, mas pouco importa o nome. Para a antropóloga Aparecida Villaça, que analisou a relação entre xamanismo e contato interétnico a partir da etnografia wari’ (um grupo de língua Txapakura da Amazônia Meridional), o movimento de tradução dos xamãs é análogo a um jogo de espelhos, em que imagens são refletidas ao infinito. Talvez aí esteja a chave para pensar o movimento de tradução no jornalismo. Veja bem, ela diz, em um texto publicado no ano 2000: “O que ocorre é uma dupla inversão: um homem destaca-se do grupo tornando-se animal e adotando um ponto de vista humano (wari’) para que o resto do grupo, permanecendo humano (Wari’), possa adotar o ponto de vista animal”. O que me ocorre é a potência desse jogo de espelhos para pensar o modo como o jornalismo – especialmente os ou as jornalistas – acessa e faz conversar mundos tão diferentes. Também me leva a pensar que tipos de narrativas são mais potentes para que a “aldeia” do ou da jornalista – ou seja, seu público – possa adotar um outro ponto de vista sem deixar de ser quem se é, de modo que essas narrativas atuem impelindo a diferença, ao invés de se assentarem na busca por um sentido único, consensual, sobre as coisas do mundo. Tudo isso ainda são esporos jogados ao vento de alto de montanha (rumo incerto), não há pretensão de delinear qualquer modus operandi aos jornalistas que queiram se tornar um pouco xamãs, um pouco jornalistas. Talvez o caso agora seja pôr em cena a força do jornalista-xamã como personagem conceitual, no sentido que dão ao termo Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro O que é filosofia?: não uma personificação abstrata, tampouco uma alegoria, mas o sujeito através do qual o pensamento se movimenta, inclusive em suas inconstâncias. É interessante pontuar que, nesse mesmo livro, os autores dizem que “na enunciação filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um personagem conceitual”. É ele, digamos, quem vai operar, realizar os conceitos. Por isso eu frisei, no início desta resposta, que não estou interessada, não mais, em modelos, mas em modos outros de pensar o jornalismo.
Como o jornalista pode se colocar no ponto de vista do outro e, ao mesmo tempo, ter um distanciamento para fazer o seu trabalho?
Uma pista emerge da ideia de que uma boa tradução é aquela, como eu disse, que revela o máximo de intencionalidades, buscando, primeiro, o quem das coisas (personificar para conhecer). A imagem do jogo de espelhos, já mencionada, também faz emergir questionamentos potentes: o que ou quem eu vejo quando estou diante de um entrevistado, de uma entrevistada? O que reverbera de mim (e da cultura organizacional, profissional, etc) nas questões que proponho? As respostas são ecos das minhas perguntas, estão aprisionadas em quais constrangimentos (um outro jogo de espelhos), são expressões de quais desejos contidos? O que eu quero ver no espelho e o que eu poderia ver caso pensasse de outra forma? Outro movimento potente é aquele inspirado em Roy Wagner, antropólogo que, na década de 1970, lançou o livro A invenção da cultura. Ele vai dizer que a cultura é inventada, é precipitada, a partir do choque cultural, do encontro com a diferença. Antes disso, segundo ele, não há cultura, porque, dizendo a partir de uma metáfora, não há espelho a partir do qual vemos a nós mesmos. E esse espelho é o outro: um outro modo de pensar, de agir, de se comportar, diferente do nosso, o qual torna visível então nosso modo de pensar, de agir, de se comportar – nossa “cultura”. Pois bem. Esse movimento implica tanto a visibilidade quanto a plausibilidade, segundo Wagner: primeiro nossa cultura se torna visível a partir do encontro com um outro modo de agir no mundo e aí buscamos analogias para entender o outro a partir dos nossos próprios termos; depois, começamos a considerar plausível um outro modo de agir no mundo, diferente do nosso. O lance é que esse processo – que nada mais é do que um movimento de tradução -, para que não fiquemos ao nível das analogias, deve deslizar pelo caminho da traição – de si e do outro. Visibilidade, plausibilidade e traição são peças que podem ser acessadas na formulação de algo inspirador ao trabalho dos jornalistas. A traição seria o momento em que acionaríamos a lógica da predação – constituir-se a partir de um outro -, lógica essa a partir da qual se movem tantas relações entre seres nas cosmologias ameríndias, inclusive a conversa que o xamã estabelece em sua tarefa de traduzir mundos. Algum jornalista poderia me perguntar: como o trabalho jornalístico pode ser conduzido a partir dessa tríade? E eu retornaria, a ele ou ela, uma pergunta similar: inspirado(a) por esse “pensar”, como você poderia conduzir a maneira como dá visibilidade aos acontecimentos do mundo, emprega técnicas para que sejam compreensíveis ao seu público e cuida para que os “termos” dos acontecimentos (o quem das coisas) não sejam somente reflexos dos seus termos – para que outros modos de pensar e de agir sejam visíveis e plausíveis para seu público? Obviamente, minha pesquisa não tem a pretensão de funcionar como manual de conduta aos repórteres de rua. Quem poderá fazer precipitar algo potente a partir dessa inspiração são aqueles que atuam ou pretendem atuar na prática profissional, considerando a necessidade de que essas discussões sejam postas em trânsito tanto nos mercados quanto na academia, especialmente na universidade pública, locais de formação de jornalistas e jornalismos.
É possível citar alguns exemplos de trabalhos jornalísticos em que você percebe evidências do repórter-xamã?
Ao longo do meu trabalho de campo no doutorado, imaginei inicialmente que os streamers, aquelas e aqueles que transmitiam ao vivo de dentro das manifestações, seriam protótipos do que você nomeia repórter-xamã. Escrevi um artigo sobre isso, publicado na Galáxia, revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Depois, acabei percorrendo outras evidências, fiz um movimento de retorno ao new journalism – essa nomenclatura que a gente usa quando queremos falar dos escritores e das escritoras norte-americanos(as) que, por volta dos anos 1960, buscavam utilizar técnicas da literatura na apuração e composição das narrativas jornalísticas, a exemplo de Gay Talese e Truman Capote. Aqui no Brasil, me trouxe pistas dessa “incorporação” – talvez lugar-comum quando se pensa em reportagem em profundidade – a jornalista Eliane Brum, por fazer jornalismo baseada mais na escuta do que na fala, ao menos assim me parece. Mais recentemente, conheci Fabiana Moraes, que, em seu O nascimento de Joicy, trouxe à tona a complexa relação que estabeleceu com sua personagem na feitura da série de reportagens publicada em 2011 no Jornal do Commercio. Neste livro de Fabiana, inclusive, ela cunha o termo “jornalismo de subjetividade”, bastante potente. De todo modo, não sei se é o caso apoiarmo-nos, agora, fervorosamente em nomes que, um pouco mais ou um pouco menos, se adequam à ideia de um jornalismo de perspectivas por incorporar uma certa faceta do repórter-xamã – estaríamos fadados, talvez, a permanecer ao nível das analogias. E o que eu quero é avançar na traição. Também fatalmente deixaria mais de uma penca de gente boa fora de vista. Talvez seja o caso pensar, primeiro, que tipos de posturas fazem parte da caracterização desse personagem conceitual e quais narrativas essas posturas podem gerar, potencialmente (o que ele pensa, como ele age e como ele diz o que pensa). No que diz respeito às narrativas, aquelas que chegarão ao público e que tem a pretensão de apresentar a esse público uma perspectiva outra (retomando o jogo de espelhos, mencionado anteriormente), há pistas na linguagem transmídia, por dar relevo à vida como rede; na utilização do diálogo realista; na descrição cena a cena; nas mudanças de ponto de vista, transitando o repórter por entre as “cabeças” dos personagens; nas expressões metafóricas, na construção de alegorias como estratégia de leitura das coisas do mundo. Enfim, narrativas que sejam mais “abertas”, menos indiciais, em que o equívoco fundante de toda conversa seja posto em cena, e não silenciado. E isso tudo me reconduz ao modo como Ailton Krenak, nas conversas que tivemos presencialmente, me “explicava” sobre este ou aquele tema que discutíamos: através de pequenas histórias. E foi assim que, numa manhã de 2015, conversamos sobre jornalismo, sem falar exatamente de jornalismo. Há um texto que publiquei, em 2017, a partir desse encontro, chamado Nada mais próprio que o outro. Tudo isso são pistas a serem seguidas.
Como aplicar a ideia do jornalismo perspectivista para mudanças no ensino e práticas profissionais?
Diria que, no que diz respeito ao ensino, o que evoca, de antemão, a ideia de um jornalismo perspectivista é menos um modelo a ser ensinado e mais uma provocação para que docentes e estudantes possam imaginar o jornalismo como vários, portando uma coleção infinda de “óculos”, fazendo referência a Bourdieu, com os quais se pode admirar uma paisagem que se perde no horizonte, um cenário que já não é mais o mesmo depois de um pequeno suspiro apenas. E isso é muito difícil quando se tem uma pressão constante por adequação dos currículos dos cursos, da conduta e dos desejos dos professores e professoras, bem como das expectativas dos alunos e das alunas às exigências de um mercado que se quer um. É quase comovente, de tão ingênuo, quando ouço um estudante dizer algo do tipo: “mas para que isso irá me servir se ‘lá fora’ se o que se exigirá de mim é outra coisa?”. E fico pensando no tanto de paisagem que se perde olhando um ponto fixo… Considerando também esse nosso contexto brasileiro, em que o ensino superior é regido por um ministério pouco preocupado com o pensamento que liberta, eco que é de um governo enlouquecido por sua imagem num espelho único, fica ainda mais difícil pensar em estímulos a pluralidades de modos de pensar, de formas de ver. Donna Haraway, em seu Manifesto ciborgue, defende que “uma visão única produz ilusões piores do que uma visão dupla ou do que a visão de um monstro de múltiplas cabeças”. Essa crença de Haraway nos faz ficar ainda mais alertas em relação ao que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chama de perigo de uma história única, ou, dizendo de outra maneira, ao que é precipitado quando estamos aprisionados em certa perspectiva de mundo: o que se produz é uma ilusão porcamente distorcida de nós mesmos, onde o divergente precisa ser silenciado, humilhado, apagado. Mas é na micropolítica que nosso olhar pode voar, ainda. E, apesar dos incentivos cada vez mais amputados por represálias ideológicas em formato de cortes – travestidos no discurso oficial de “contingenciamentos” -, a universidade ainda é o lugar por excelência da pesquisa, e como a temos feito! Em se tratando de pensar o jornalismo em sua multiplicidade de perspectivas, em suas urgências e torrencialidades, cito o Grupo Quintais: Cultura da Mídia, Arte e Política, do Departamento de Jornalismo da Ufop-MG, onde leciono, que vem se debruçando justamente em construir reflexões sobre o mundo amparado por modos não hegemônicos de conhecer e de existir, o que por si só já é um ato de resistência. E esse é um tipo de conversa a que os alunos e alunas começam a ter acesso, a participar, a se interessar, em várias universidades do país e do mundo. Somos muitos. E são esses estudantes, creio fortemente, que farão existir um mercado no plural, imaginando e exercitando cotidianamente jornalismos de perspectivas.
FONTE: http://observatoriodaimprensa.com.br/entrevista/o-xamanismo-como-inspiracao-para-novas-formas-de-pensar-o-jornalismo/
Observatório da imprensa
Lara Linhalis Guimarães é professora de Jornalismo na Universidade Federal de Ouro Preto. É integrante do grupo de pesquisa Quintais: Cultura da Mídia, Arte e Política e do Laboratório de Jornalismo e Narrativas Audiovisuais, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail ao jornalista Pedro Varoni, Lara fala sobre suas pesquisas, que propõem o diálogo entre as práticas xamânicas de matriz indígena e o exercício do jornalismo.
Essas inquietações foram despertadas durante o doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando se dedicou a pesquisar o midiativismo das manifestações de 2013. As chamadas “jornadas de junho” foram o epicentro de mudanças políticas que impactaram o jornalismo. A grande mídia cobriu as manifestações de longe, apartada do acontecimento. De outro lado, assistimos à imersão total na ação daqueles que fizeram as transmissões ao vivo, de dentro das manifestações em 2013. Essa dicotomia fez a pesquisadora pensar num deslocamento: nem tão de dentro, nem tão de fora.
A resposta para esse impasse veio num curso de aperfeiçoamento em cultura e histórias do povo indígena na Universidade Federal de Juiz de Fora. Lara era tutora do curso e conheceu Ailton Krenak, liderança indígena e escritor. Através dele, aproximou-se do perspectivismo ameríndio, teoria do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. A partir daí, passou a refletir sobre uma analogia entre os deslocamentos perspectivísticos próprios do xamanismo e a tradução de mundo almejada pelos jornalistas.
Mas não espere dessas reflexões manuais para um novo jornalismo. Trata-se, antes, do convite a pensar novos modos de mediação – o repórter xamã é um personagem conceitual, no sentido atribuído pelos filósofos Deleuze e Guattari. Afinal, como escreve Lara em um dos seus textos, “o nascimento de uma nova ontologia é questão de sobrevivência: do mundo e do jornalismo”.
O contexto contemporâneo tem imposto desafios epistemológicos ao jornalismo. Ainda é possível defender as ideias de imparcialidade e objetividade atualmente?
Primeiro, precisamos pensar como aquilo que se convencionou chamar de “o” jornalismo – o hegemônico, aquele legitimado na prática profissional, ao menos como modelo a ser seguido – abriga dessas ideias e se esse jornalismo dá conta da multiplicidade de mundos que se proliferam e são postos em tensão no contexto contemporâneo. Esse jornalismo – o legitimado – é filho da modernidade, logo, de uma visão cientificista de mundo: aquela que separa natureza de cultura, fato de versão, realidade objetiva de representação. Por essa via, caberia ao jornalista a tarefa árdua de buscar sempre ver os acontecimentos de uma perspectiva distanciada, ou atuar “do lado de fora” dos fatos, exercendo uma postura imparcial a respeito, ao menos como meta. Esse ideal de conhecimento está baseado na crença de que conhecer é objetivar, ou seja, despir os fatos de suas subjetividades, a fim de conhecê-los melhor. A questão que se coloca é: o que esse jornalismo, com base nesse ideal, tem produzido em termos de conhecimento sobre o(s) mundo(s) contemporâneo(s)? Vejo pouca coisa potente e assumo o risco da generalização quando digo isso. Assim como vejo pouco promissor o que convencionou-se chamar de jornalismo ativista: aquele que prega a inserção radical na ação, ou a valoração por si só positiva das subjetividades, uma vez que a presunção de verdade prevalece (agora “do lado de dentro” dos acontecimentos). Penso ser urgente ativar o pronome indefinido quando tratamos de jornalismo – um jornalismo -, pois assim, ao menos potencialmente, abrimos espaço para pensar – e encontrar – outros jornalismos possíveis, que se sustentem a partir de outros ideais de conhecimento, outras formas de tradução ou maneiras de contar histórias. Uma pista seria buscar, em suma, outras ontologias – outros modos de ser e estar no mundo – para inventar um jornalismo (não “o” jornalismo) que abrigue a diferença, ao invés de silenciá-la, que faça dialogar perspectivas, atuando, de fato, os ou as jornalistas como mediadores de mundos. Se o jornalismo, aquele do artigo definido masculino, não fizer isso (se ele não se mover pelo terreno da inconstância do ser, virando “um”, “uma”, nem que seja pra voltar a ser “o”), penso, em tom melancólico mesmo, que haverá um momento em que os discursos, no geral, serão produzidos apenas para o espelho – para os mesmos, para quem pensa igual, vive igual. E aí vem o risco de proliferação de narrativas totalitárias, e, como já temos visto, da ascensão da intolerância em diversos níveis, e essas narrativas terão mais impacto na vida das pessoas do que nossas histórias contadas a partir de técnicas de verificação precisas. Há que se buscar outras maneiras de conversar e suspeito que, para isso, o filho da modernidade tenha que sair da casa onde nasceu.
As manifestações de 2013 trouxeram à tona a necessidade do jornalismo brasileiro ser mais plural, a partir da ideia da multiparcialidade defendida por coletivos como o Mídia Ninja. O que se viu na sequência foi um modelo de jornalismo ativista, convivendo com a mídia conservadora mainstream. Há um terceiro caminho para além dessa dualidade que tem marcado a vida social e a imprensa brasileira?
O que eu verifiquei a partir da minha pesquisa de campo junto a coletivos de midiativismo no Rio de Janeiro – especialmente junto ao grupo que se autodenominou como Mídia Ninja, vinculado ao coletivo Fora do Eixo -, é que a ideia de inserção radical na ação, à primeira vista muito potente quando a gente pensa no modo como a mídia tradicional vinha cobrindo as manifestações (do alto dos edifícios, dos helicópteros ou numa performance falseada de um ou outro repórter no meio dos manifestantes), trazia consigo a mesma presunção de acesso privilegiado ao mundo, ao acontecimento, que as narrativas produzidas pela mídia tradicional. A questão é que essa presunção não evoluiu para uma conversa entre diferentes perspectivas. O que se viu foi a proliferação de contra-narrativas, valoradas positivamente por afirmar algo “contra” um discurso hegemônico. De fato, a existência e a visibilidade dessas contra-narrativas já eram por si sós um ato de resistência, naquele momento. Lembro-me bem de vários entrevistados que relataram que decidiram transmitir ao vivo os protestos porque o que eles viam na televisão ou liam nos jornais não correspondiam ao que eles vivenciavam enquanto manifestantes. Entretanto, narrativas e contra-narrativas se encaixam bem em esquemas maniqueístas, para o bem e para o mal. Naquele momento da minha pesquisa, comecei a flertar com correntes contemporâneas da antropologia, que buscavam trilhar o seguinte caminho no que diz respeito ao conhecimento sobre a humanidade: para entender sobre nós – inclusive sobre a própria ideia de humanidade, que é também uma construção – precisamos ir até nossos outros! E quem são nossos outros? Aqueles que sustentam suas vidas a partir de outros modos de ser e estar no mundo, de outras ontologias. Naquele momento, também comecei a acessar indígenas que se propunham a dar visibilidade aos seus modos de pensar o mundo, como Davi Kopenawa, Kaká Werá, Álvaro Tukano e especialmente Ailton Krenak, importante liderança indígena, jornalista e profundo conhecedor da cosmologia ameríndia. Por esse caminho, iniciei a tessitura do que, à primeira vista, me pareceu um potente devaneio: criar uma analogia entre o tornar-se outro, próprio dos xamãs em seus deslocamentos perspectívicos, e o movimento de tradução de mundos almejado pelos jornalistas. Os xamãs, ou pajés, a grosso modo, são aqueles que conseguem fazer dialogar espécies diferentes de seres – plantas, animais, espíritos, aquilo que a gente chama de fenômenos da natureza ou ainda o que a gente entende como seres inanimados, como montanhas, pedras, objetos, etc. Para que esse tipo de tradução seja possível, a alteridade – a diferença – torna-se constitutiva do eu, num movimento em que tanto o xamã quanto a espécie com a qual se quer dialogar entram em um processo de transformação mútua. Cada um passa a “funcionar” como o outro, a partir de um ideal de conhecimento em que, como acredita o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, conhecer é subjetivar, personificar, auferir o máximo de intencionalidades daquele – ou daquilo – que se propõe a conhecer. Esse devir-outro, ou “ver como”, distancia-se do dualismo lado de fora/lado de dentro, o qual observei no âmbito das manifestações de junho de 2013 e no eco ruidoso desses protestos ao longo da Copa de Mundo de 2014. Seria um movimento de tradução que é, ao mesmo tempo, lado de dentro e lado de fora. E, a partir daí, comecei a buscar inspiração no xamanismo para pensar a tradução de mundos realizada pelos jornalistas. O momento agora é de traição da analogia inicial a qual me propus, para pensar novas combinações com vistas a potencializar o “ver como” dos jornalistas.
O seu trabalho propõe como modelo um diálogo do jornalismo com a teoria do perspectivismo ameríndio do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro. É possível resumir essa proposta?
É importante dizer, de antemão, que a pretensão de esboçar um novo modelo de jornalismo a partir do xamanismo é menos importante, a meu ver, do que pensar o jornalismo a partir do xamanismo. Ou, mais precisamente, pensar um jornalismo a partir da ideia de xamanismo que construí, muito especialmente, a partir de Davi Kopenawa e Viveiros de Castro. É este antropólogo, por exemplo, que vai entender os xamãs como os mestres do esquematismo cósmico. A partir do estudo desses povos é que Viveiros de Castro fez surgir o conceito de perspectivismo ameríndio. O conceito abriga a crença, partilhada por povos indígenas amazônicos, de que o mundo é habitado por diferentes tipos de seres (humanos e não-humanos) que são sujeitos, ou seja, têm capacidade de agência sobre o mundo, são pessoas (mesmo que pessoas não-humanas), agem com base em intencionalidade e reflexividade. Nesse conceito está também a ideia de que cada um desses seres se vê como humano, vendo todos os outros, então, como não-humanos. Isso porque, em algumas cosmologias não ocidentais, prevalece a ideia de que há uma humanidade moral comum a todos os seres (uma só alma, uma só cultura), os quais se diferenciam então pelo corpo (pela “natureza”). Ser humano, assim, seria uma posição ocupada somente em relação a um outro, o que nos faz mirar a ideia de humanidade como capacidade, não como condição essencial. E põe no horizonte, ainda, a multiplicidade potencial de condições de existência. Pois bem. O deslocamento xamânico ameríndio almejaria, então, a interlocução transespecífica, aquela entre diferentes espécies de seres, vendo os não-humanos como eles se veem, ou seja, como humanos. O xamã seria aquele autorizado a cruzar essas perspectivas múltiplas (os diferentes corpos, as diferentes naturezas), desenvolvendo sua diplomacia, a sua arte política, entre variadas espécies de seres que habitam a zona de uma humanidade moral (uma só cultura). A tradução levada a cabo pelos xamãs almejaria o quem das coisas, para então chegar ao por que (ou aos porquês). Isso em razão de o xamanismo cultivar um ideal epistemológico, como já mencionei anteriormente, em que conhecer é personificar. Uma boa interpretação xamânica, assim, é aquela que, segundo Viveiros de Castro, consegue revelar um máximo de intencionalidades em cada evento. Pois bem, interessa então navegar (e uso esse verbo intencionalmente, porque minha ação é justamente essa) pelo movimento de tornar-se outro próprio do xamanismo, a fim de inspirar o que chamei inicialmente de jornalismo de perspectivas, mas pouco importa o nome. Para a antropóloga Aparecida Villaça, que analisou a relação entre xamanismo e contato interétnico a partir da etnografia wari’ (um grupo de língua Txapakura da Amazônia Meridional), o movimento de tradução dos xamãs é análogo a um jogo de espelhos, em que imagens são refletidas ao infinito. Talvez aí esteja a chave para pensar o movimento de tradução no jornalismo. Veja bem, ela diz, em um texto publicado no ano 2000: “O que ocorre é uma dupla inversão: um homem destaca-se do grupo tornando-se animal e adotando um ponto de vista humano (wari’) para que o resto do grupo, permanecendo humano (Wari’), possa adotar o ponto de vista animal”. O que me ocorre é a potência desse jogo de espelhos para pensar o modo como o jornalismo – especialmente os ou as jornalistas – acessa e faz conversar mundos tão diferentes. Também me leva a pensar que tipos de narrativas são mais potentes para que a “aldeia” do ou da jornalista – ou seja, seu público – possa adotar um outro ponto de vista sem deixar de ser quem se é, de modo que essas narrativas atuem impelindo a diferença, ao invés de se assentarem na busca por um sentido único, consensual, sobre as coisas do mundo. Tudo isso ainda são esporos jogados ao vento de alto de montanha (rumo incerto), não há pretensão de delinear qualquer modus operandi aos jornalistas que queiram se tornar um pouco xamãs, um pouco jornalistas. Talvez o caso agora seja pôr em cena a força do jornalista-xamã como personagem conceitual, no sentido que dão ao termo Gilles Deleuze e Félix Guattari, no livro O que é filosofia?: não uma personificação abstrata, tampouco uma alegoria, mas o sujeito através do qual o pensamento se movimenta, inclusive em suas inconstâncias. É interessante pontuar que, nesse mesmo livro, os autores dizem que “na enunciação filosófica, não se faz algo dizendo-o, mas faz-se o movimento pensando-o, por intermédio de um personagem conceitual”. É ele, digamos, quem vai operar, realizar os conceitos. Por isso eu frisei, no início desta resposta, que não estou interessada, não mais, em modelos, mas em modos outros de pensar o jornalismo.
Como o jornalista pode se colocar no ponto de vista do outro e, ao mesmo tempo, ter um distanciamento para fazer o seu trabalho?
Uma pista emerge da ideia de que uma boa tradução é aquela, como eu disse, que revela o máximo de intencionalidades, buscando, primeiro, o quem das coisas (personificar para conhecer). A imagem do jogo de espelhos, já mencionada, também faz emergir questionamentos potentes: o que ou quem eu vejo quando estou diante de um entrevistado, de uma entrevistada? O que reverbera de mim (e da cultura organizacional, profissional, etc) nas questões que proponho? As respostas são ecos das minhas perguntas, estão aprisionadas em quais constrangimentos (um outro jogo de espelhos), são expressões de quais desejos contidos? O que eu quero ver no espelho e o que eu poderia ver caso pensasse de outra forma? Outro movimento potente é aquele inspirado em Roy Wagner, antropólogo que, na década de 1970, lançou o livro A invenção da cultura. Ele vai dizer que a cultura é inventada, é precipitada, a partir do choque cultural, do encontro com a diferença. Antes disso, segundo ele, não há cultura, porque, dizendo a partir de uma metáfora, não há espelho a partir do qual vemos a nós mesmos. E esse espelho é o outro: um outro modo de pensar, de agir, de se comportar, diferente do nosso, o qual torna visível então nosso modo de pensar, de agir, de se comportar – nossa “cultura”. Pois bem. Esse movimento implica tanto a visibilidade quanto a plausibilidade, segundo Wagner: primeiro nossa cultura se torna visível a partir do encontro com um outro modo de agir no mundo e aí buscamos analogias para entender o outro a partir dos nossos próprios termos; depois, começamos a considerar plausível um outro modo de agir no mundo, diferente do nosso. O lance é que esse processo – que nada mais é do que um movimento de tradução -, para que não fiquemos ao nível das analogias, deve deslizar pelo caminho da traição – de si e do outro. Visibilidade, plausibilidade e traição são peças que podem ser acessadas na formulação de algo inspirador ao trabalho dos jornalistas. A traição seria o momento em que acionaríamos a lógica da predação – constituir-se a partir de um outro -, lógica essa a partir da qual se movem tantas relações entre seres nas cosmologias ameríndias, inclusive a conversa que o xamã estabelece em sua tarefa de traduzir mundos. Algum jornalista poderia me perguntar: como o trabalho jornalístico pode ser conduzido a partir dessa tríade? E eu retornaria, a ele ou ela, uma pergunta similar: inspirado(a) por esse “pensar”, como você poderia conduzir a maneira como dá visibilidade aos acontecimentos do mundo, emprega técnicas para que sejam compreensíveis ao seu público e cuida para que os “termos” dos acontecimentos (o quem das coisas) não sejam somente reflexos dos seus termos – para que outros modos de pensar e de agir sejam visíveis e plausíveis para seu público? Obviamente, minha pesquisa não tem a pretensão de funcionar como manual de conduta aos repórteres de rua. Quem poderá fazer precipitar algo potente a partir dessa inspiração são aqueles que atuam ou pretendem atuar na prática profissional, considerando a necessidade de que essas discussões sejam postas em trânsito tanto nos mercados quanto na academia, especialmente na universidade pública, locais de formação de jornalistas e jornalismos.
É possível citar alguns exemplos de trabalhos jornalísticos em que você percebe evidências do repórter-xamã?
Ao longo do meu trabalho de campo no doutorado, imaginei inicialmente que os streamers, aquelas e aqueles que transmitiam ao vivo de dentro das manifestações, seriam protótipos do que você nomeia repórter-xamã. Escrevi um artigo sobre isso, publicado na Galáxia, revista do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Depois, acabei percorrendo outras evidências, fiz um movimento de retorno ao new journalism – essa nomenclatura que a gente usa quando queremos falar dos escritores e das escritoras norte-americanos(as) que, por volta dos anos 1960, buscavam utilizar técnicas da literatura na apuração e composição das narrativas jornalísticas, a exemplo de Gay Talese e Truman Capote. Aqui no Brasil, me trouxe pistas dessa “incorporação” – talvez lugar-comum quando se pensa em reportagem em profundidade – a jornalista Eliane Brum, por fazer jornalismo baseada mais na escuta do que na fala, ao menos assim me parece. Mais recentemente, conheci Fabiana Moraes, que, em seu O nascimento de Joicy, trouxe à tona a complexa relação que estabeleceu com sua personagem na feitura da série de reportagens publicada em 2011 no Jornal do Commercio. Neste livro de Fabiana, inclusive, ela cunha o termo “jornalismo de subjetividade”, bastante potente. De todo modo, não sei se é o caso apoiarmo-nos, agora, fervorosamente em nomes que, um pouco mais ou um pouco menos, se adequam à ideia de um jornalismo de perspectivas por incorporar uma certa faceta do repórter-xamã – estaríamos fadados, talvez, a permanecer ao nível das analogias. E o que eu quero é avançar na traição. Também fatalmente deixaria mais de uma penca de gente boa fora de vista. Talvez seja o caso pensar, primeiro, que tipos de posturas fazem parte da caracterização desse personagem conceitual e quais narrativas essas posturas podem gerar, potencialmente (o que ele pensa, como ele age e como ele diz o que pensa). No que diz respeito às narrativas, aquelas que chegarão ao público e que tem a pretensão de apresentar a esse público uma perspectiva outra (retomando o jogo de espelhos, mencionado anteriormente), há pistas na linguagem transmídia, por dar relevo à vida como rede; na utilização do diálogo realista; na descrição cena a cena; nas mudanças de ponto de vista, transitando o repórter por entre as “cabeças” dos personagens; nas expressões metafóricas, na construção de alegorias como estratégia de leitura das coisas do mundo. Enfim, narrativas que sejam mais “abertas”, menos indiciais, em que o equívoco fundante de toda conversa seja posto em cena, e não silenciado. E isso tudo me reconduz ao modo como Ailton Krenak, nas conversas que tivemos presencialmente, me “explicava” sobre este ou aquele tema que discutíamos: através de pequenas histórias. E foi assim que, numa manhã de 2015, conversamos sobre jornalismo, sem falar exatamente de jornalismo. Há um texto que publiquei, em 2017, a partir desse encontro, chamado Nada mais próprio que o outro. Tudo isso são pistas a serem seguidas.
Como aplicar a ideia do jornalismo perspectivista para mudanças no ensino e práticas profissionais?
Diria que, no que diz respeito ao ensino, o que evoca, de antemão, a ideia de um jornalismo perspectivista é menos um modelo a ser ensinado e mais uma provocação para que docentes e estudantes possam imaginar o jornalismo como vários, portando uma coleção infinda de “óculos”, fazendo referência a Bourdieu, com os quais se pode admirar uma paisagem que se perde no horizonte, um cenário que já não é mais o mesmo depois de um pequeno suspiro apenas. E isso é muito difícil quando se tem uma pressão constante por adequação dos currículos dos cursos, da conduta e dos desejos dos professores e professoras, bem como das expectativas dos alunos e das alunas às exigências de um mercado que se quer um. É quase comovente, de tão ingênuo, quando ouço um estudante dizer algo do tipo: “mas para que isso irá me servir se ‘lá fora’ se o que se exigirá de mim é outra coisa?”. E fico pensando no tanto de paisagem que se perde olhando um ponto fixo… Considerando também esse nosso contexto brasileiro, em que o ensino superior é regido por um ministério pouco preocupado com o pensamento que liberta, eco que é de um governo enlouquecido por sua imagem num espelho único, fica ainda mais difícil pensar em estímulos a pluralidades de modos de pensar, de formas de ver. Donna Haraway, em seu Manifesto ciborgue, defende que “uma visão única produz ilusões piores do que uma visão dupla ou do que a visão de um monstro de múltiplas cabeças”. Essa crença de Haraway nos faz ficar ainda mais alertas em relação ao que a escritora nigeriana Chimamanda Adichie chama de perigo de uma história única, ou, dizendo de outra maneira, ao que é precipitado quando estamos aprisionados em certa perspectiva de mundo: o que se produz é uma ilusão porcamente distorcida de nós mesmos, onde o divergente precisa ser silenciado, humilhado, apagado. Mas é na micropolítica que nosso olhar pode voar, ainda. E, apesar dos incentivos cada vez mais amputados por represálias ideológicas em formato de cortes – travestidos no discurso oficial de “contingenciamentos” -, a universidade ainda é o lugar por excelência da pesquisa, e como a temos feito! Em se tratando de pensar o jornalismo em sua multiplicidade de perspectivas, em suas urgências e torrencialidades, cito o Grupo Quintais: Cultura da Mídia, Arte e Política, do Departamento de Jornalismo da Ufop-MG, onde leciono, que vem se debruçando justamente em construir reflexões sobre o mundo amparado por modos não hegemônicos de conhecer e de existir, o que por si só já é um ato de resistência. E esse é um tipo de conversa a que os alunos e alunas começam a ter acesso, a participar, a se interessar, em várias universidades do país e do mundo. Somos muitos. E são esses estudantes, creio fortemente, que farão existir um mercado no plural, imaginando e exercitando cotidianamente jornalismos de perspectivas.
FONTE: http://observatoriodaimprensa.com.br/entrevista/o-xamanismo-como-inspiracao-para-novas-formas-de-pensar-o-jornalismo/
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