quarta-feira, 23 de outubro de 2019

Terceiro episódio da série de vídeos de Ecoa "Cada ação importa"... VÍDEO



No terceiro episódio da série de vídeos de Ecoa "Cada ação importa", sobre iniciativas e atitudes que contribuem para um mundo melhor, o ambientalista, escritor e líder indígena Ailton Krenak fala sobre a importância de entender a Terra como parte de nós, seres humanos. "Se você disser que a natureza é um recurso, ela é um recurso para que e para quem? Além desse grave equívoco de acreditar que a natureza é um recurso, ele vem acompanhado de uma outra percepção: de que a natureza é uma coisa diferente de nós, os seres humanos", diz. O escritor, que lançou em junho deste ano o livro "Ideias para Adiar o Fim do Mundo", faz uma reflexão sobre a humanidade e a natureza nos tempos atu... - Veja mais em https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/ailton-krenak/#tematico-1?cmpid=copiaecola


Vídeo da entrevista no link: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/ailton-krenak/#tematico-1




FONTE: https://www.uol.com.br/ecoa/reportagens-especiais/ailton-krenak/#tematico-1?cmpid=copiaecola


A instigante experiência da “comuna” originária

Criado em 1989, em Goiás, Centro de Pesquisa Indígena congregava diversas etnias. Propagava os saberes ancestrais, acolhia acadêmicos, sem-terra e seringueiros e propunha modelos econômicos sustentáveis. Inspirou uma geração de ativistas

Por Angela Pappiani | Imagem: Beto Ricardo/ISA

Convivendo com povos indígenas há tanto tempo, aprendi a valorizar as histórias antigas, as narrativas que nos ensinam sobre os fundamentos, sobre a origem e o passado, consolidando o presente e o futuro. O que tenho feito, ao escrever para o site Outras Palavras, é buscar compartilhar essa vivência.

Nestes tempos de tantas incertezas, versões contraditórias sobre a verdade, questionamentos sobre os rumos do país, sobre o incômodo representado pelos “índios” que desafiam o progresso e a modernidade, decidi resgatar algumas histórias, não tão antigas assim, mas que talvez possam ajudar a entender as lutas e trajetória do movimento indígena, as ações de afirmação e assim enxergarmos o momento presente e o que vem por aí. Assuntos que não estão na mídia, que ficaram perdidos em registros esparsos num tempo em que o Google não era onipresente.

A primeira história é sobre o Centro de Pesquisa Indígena (CPI) e seu legado.

Uma publicação do Núcleo de Cultura Indígena, de circulação restrita, editada em 1996, apresentava essa iniciativa pioneira nas palavras de seu coordenador Ailton Krenak:

“O Centro de Pesquisa Indígena não é um lugar, é um caminho que liga a memória da criação do mundo, presente nas narrativas tradicionais, no conhecimento antigo, com o conhecimento sobre o novo que é o trabalho do cientista e do pesquisador”.

O CPI foi criado em 1989, logo após a promulgação da nova Constituição que, graças ao trabalho incansável das comunidades indígenas e seus aliados, garantiu direitos básicos aos povos originários.

Espaço físico de convivência interétnica e experimentação, a partir de um sítio nos arredores de Goiânia, o CPI seria o local de implementação do Programa de Formação e Apoio à Pesquisa das Comunidades Indígenas, com o encontro entre o conhecimento tradicional, as novas tecnologias, o conhecimento científico ocidental e acadêmico.

A criação do Centro de Pesquisa Indígena foi inspirada num sonho de Sibupá, importante ancião e xamã do povo Xavante. Sibupá sonhou com o “dono dos animais” que lhe pedia uma ação urgente, mostrando a devastação que os warazu – os estrangeiros, que estavam causando danos à natureza, tirando a possibilidade de sobrevivência dos animais silvestres, base da alimentação do corpo e do espírito dos guerreiros desse povo. Sem o cerrado, sem as frutas, a água e os animais, a vida não seria mais possível. A única chance de sobreviver, segundo os anciãos Xavante, era encontrar aliados e novas tecnologias que dessem conta do ritmo acelerado da destruição. Assim entra na história o Núcleo de Cultura Indígena, organização formal criada pela União das Nações Indígenas (UNI) em 1984 para implementar suas ações e projetos, já que a UNI fora impedida de se formalizar por trazer em seu conceito a diversidade de nações existentes no país. Depois de toda a luta pela Constituição, com as garantias asseguradas aos territórios indígenas, o próximo passo na estratégia era buscar a proteção e gerenciamento desses territórios, afirmação das identidades e alternativas econômicas sustentadas nas tradições para dar respostas ao novo tempo.

Assim, em 1988, começava a ser construída, a partir das demandas dos povos indígenas, uma parceria pioneira com a Universidade Católica de Goiás (UCG), com a mediação do Professor Wanderlei de Castro. Um programa pioneiro, muito anterior à ideia de cotas, e com uma proposta de intercâmbio de saberes e conhecimentos envolvendo jovens estudantes e os anciãos das aldeias. Essa iniciativa não tinha como proposta a criação de profissionais para o mercado de trabalho, mas sim de pesquisadores com ampla formação, com acesso ao conhecimento acadêmico e valorização de suas tradições, buscando respostas para os desafios contemporâneos, com foco na preservação do patrimônio físico, cultural e espiritual dos territórios ao lado da melhoria nas condições de vida das comunidades.

O Programa de Apoio à Formação e Pesquisa das Comunidades Indígenas é implantado a partir de um sítio, nos arredores de Goiânia. Em casas tradicionais construídas pelo povo Xavante, conviveram, durante quatro anos de formação em Biologia Aplicada, os oito estudantes indígenas enviados por suas comunidades. Um currículo especial permitia que esses estudantes indígenas, mesmo sem formação escolar, frequentassem a universidade, as aulas e laboratórios, tendo acesso ao conhecimento acadêmico. Ao mesmo tempo, o espaço do CPI recebia professores e estudantes nas atividades de experimentação, na convivência com os mestres vindos das aldeias. Para essa formação, vieram de Roraima dois jovens do povo Yanomami (Geraldo e Abrahão), dois jovens Tikuna, do Amazonas (Gilson e Bruno), um jovem do povo Suruí, de Rondônia (Almir – que se tornaria depois um grande líder, reconhecido internacionalmente), um jovem Xavante (Jamiro) e dois do povo Krenak (Carlos e Mário). No espaço do sítio foi montado um viveiro de mudas nativas com estudos sobre germinação, viveiros de peixes e camarões nativos, criatório de cateto e queixada, áreas de agrofloresta e recuperação de solos, com assessoria de José Lutzenberg da Fundação Gaia, laboratórios de pesquisa em processamento de frutos nativos.

Toda a estrutura física de ponta montada no sítio, os programas e parcerias e o gerenciamento do Centro de Pesquisa eram de responsabilidade de uma equipe de profissionais do Núcleo, uma organização indígena que pela primeira vez recebia investimentos de várias fontes internacionais para o desenvolvimento independente desse trabalho.

Ao longo desse processo, se juntaram outros centros de excelência como a Esalq (Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiróz), Embrapa, CPAC (Centro de Pesquisas agropecuárias do cerrado), CPAP (Centro de Pesquisas Agropecuárias do Pantanal) e IBAMA.

Além desse programa, cinco estudantes das etnias Baré, Pankararu, Terena e Kaingang, com segundo grau completo, iniciaram o curso de Direito com a proposta de formação dos primeiros advogados indígenas. Essa iniciativa foi interrompida no segundo ano diante da recusa do Conselho Federal de Educação, do Ministério da Educação, em reconhecer a legitimidade e especificidade dos cursos.

A proposta do Centro de Pesquisa Indígena estava muito além de seu tempo e deixou um legado importante para todos os envolvidos direta ou eventualmente no trabalho. O espaço do sítio reuniu etnias diferentes trocando saberes e impressões do mundo, produzindo cultura e intercâmbios, juntou educadores e estudantes da universidade em torno de conhecimentos milenares, com respeito, escuta, trocas verdadeiras, acolheu trabalhadores rurais sem terra e seringueiros e extrativistas da Amazônia com seus conhecimentos sobre a natureza, provocou novas pesquisas e descobertas nas parcerias com outras instituições, abriu caminhos novos para comunidades indígenas reafirmarem sua identidade, autonomia e relações com a sociedade não indígena.

Depois de quatro anos de atividades a partir desse lugar, no centro-oeste do país e com a parceria com a Universidade Católica, a proposta se expandiu, com pesquisas e formações em outros pontos do país. O território Krenak, que acabava de ser retomado legalmente, depois de décadas de luta, foi um dos núcleos de ação do CPI com o Programa de Reflorestamento e criação controlada de animais silvestres. Todo o esforço do povo Krenak na recuperação de sua terra reconquistada, de sua cultura e autonomia foi brutalmente alterado pelo rompimento da Barragem de Mariana, em 2015, que provocou o estado de coma do Rio Doce e de muitos sonhos da comunidade.

No Estado do Mato Grosso, o Projeto Jaburu, com o povo Xavante, recuperou 20% do cerrado que havia sido devastado pela cultura de arroz e pasto, conseguiu o aumento na população de animais silvestres, adensamento de árvores frutíferas, monitoramento e controle do território.

No Estado do Acre as ações do CPI fortaleceram pesquisas e projetos práticos nas áreas Kaxinawá/Huni Kuin do Rio Jordão e Yawanawá do Rio Gregório, com manejo de caça e pesca, plantio e comercialização de urucum e desenvolvimento e produção do “couro vegetal” – tecido emborrachado com látex para manufatura de diversos produtos, melhorando o ganho para as comunidades extrativistas. Além dos projetos de autonomia econômica, esses povos fortaleceram sua identidade, cultura e tradição em grandes Festivais Culturais que reúnem hoje centenas de pessoas, das velhas e novas gerações, e aliados de vários cantos do mundo em torno da celebração da vida. Na área Ashaninka do Rio Amônia o trabalho se fortaleceu com o manejo de caça e pesca, recuperação de áreas degradadas e pesquisa de essências e princípios ativos florestais para possíveis usos nas áreas da cosmética e medicina, além de coleta de sementes de árvores nativas para reflorestamento comercializadas pela Esalq, a partir de Araraquara, São Paulo. Desde 2007, o Centro Yorenka Ãtame, no município de Marechal Thaumaturgo, consolidou e aprimorou os princípios do Centro de Pesquisa, tornando-se uma referência para os povos indígenas e não indígenas de todo o país, firmando- se como um espaço de diálogo, troca e difusão de saberes da floresta.

Em Rondônia, Almir Suruí e representantes das novas gerações dão continuidade a pesquisas e projetos de proteção da biodiversidade, recuperação e fortalecimento de saberes milenares, geração de renda a partir dos recursos da floresta em pé. A Associação Metareilá foi pioneira na fiscalização do território usando a tecnologia em parceria com o Google Earth e a firmar um acordo de compensação ambiental por sequestro de carbono. Essas e outras iniciativas confrontam as políticas desenvolvimentistas do Estado que causaram a perda de quase toda a cobertura florestal do Estado, de sua biodiversidade, e ainda gerando conflitos e mortes decorrentes da falta de controle sobre garimpos ilegais de ouro e diamantes.

No território Yanomami o legado desse trabalho também floresceu. Davi Kopenawa foi sempre um importante aliado, incentivador e participante ativo da construção do Centro de Pesquisa, contribuindo ao trazer o conhecimento milenar dos Yanomami sobre a floresta. O conhecimento sobre as relações com instituições e outros povos, incorporado na vivência dentro do Centro de Pesquisa, é ainda importante ferramenta para afirmação dos valores do povo Yanomami, em sua relação com o Estado e a sociedade não indígena.

O que essa breve história, apesar de muito resumida, revela? Que depois de lutarem durante anos por uma lei que respeitasse os povos indígenas em sua diversidade, especificidade e em seus direitos dentro da nação brasileira, esses povos continuaram a se mover em direção ao futuro, buscando garantir a integridade de seus territórios, a vida em abundância para as novas gerações, a relação de troca verdadeira com os não indígenas, com a ciência e a academia. Muitas das ações iniciadas na década de 1980 se consolidaram e expandiram trazendo melhoria de vida a essas populações, a partir de sua vontade e determinação, independentemente dos Governos e, muitas vezes, com a própria vida em risco. Benke Pyanko Ashaninka, Almir Suruí, Davi Kopenawa Yanomami e tantos outros líderes têm suas vidas ameaçadas por madeireiros, garimpeiros, grileiros, políticos corruptos, pelos interesses econômicos de grandes corporações. Apesar do reconhecimento nacional e internacional ao empenho desses líderes na valorização da diversidade de culturas e formas de vida, essa luta parece estar sempre na contramão dos interesses do Estado que não garante a integridade de suas vidas.

As conquistas nunca foram e não serão fáceis pois o confronto é com um modelo que valoriza as conquistas materiais, colocando o lucro e a exploração acima de tudo e todos. Só a conexão com os ancestrais e o mundo espiritual pode dar a proteção e o ânimo para que a luta continue.

As leis escritas no papel, infelizmente estão sujeitas aos desejos dos grandes poderosos e a eles se dobram. Todas as descobertas da ciência ocidental sobre a importância das florestas para o planeta, que vêm confirmar o conhecimento milenar dos povos indígenas, não conseguem dialogar com a mentalidade egoísta e mercantilista de boa parte da humanidade. Os povos tradicionais sabem que cada ser da natureza é vivo, tem humor e um papel crucial na sobrevivência de todo o coletivo. Que sendo parte da natureza, os homens têm responsabilidade sobre suas ações e o futuro de nossa casa comum, o planeta. E esses povos fazem sua parte, conquistam novos conhecimentos, criam novas oportunidades, mostram caminhos, se alegram em contar suas histórias. A quem quiser escutar.

FONTE: https://outraspalavras.net/alemdamercadoria/a-instigante-experiencia-da-comuna-indigena/